30 de abr. de 2008

Novela?

A cobertura televisiva do caso Isabella Nardoni, cujo ápice se deu neste domingo, quando da reconstituição do crime no apartamento de onde a menina, de apenas cinco anos, foi jogada, está ultrapassando as fronteiras da ética. Foram horas e horas de exploração dos detalhes cruéis que cercam a morte da pobre garotinha. O noticiário eletrônico disputa o acesso, sempre exclusivo, claro, a provas e trechos dos laudos do inquérito. Os chamados programas da tarde também não falam de outra coisa. Apresentadoras de cabelo alisado por escova – elas são todas iguais – consultam psicólogos, advogados e até peritos para analisarem as possibilidades do caso. A imprensa, a opinião pública e até a polícia já têm certeza de que o pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta Ana Carolina Jatobá, assassinaram a criança. Falta apenas saber como, e com detalhes. Todos aguardam as cenas do próximo capítulo.

Travestindo


Travestis sempre chamam a atenção. Além de atiçarem o imaginário, a curiosidade e até a libido das pessoas (por que não?), eles ajudam a vender revista e jornal. Não bastasse serem estigmatizados, inclusive entre os próprios homossexuais, ainda servem de chacota para a grande parte da população. Representam a medida exata do quanto “o mundo está perdido”.

Poucos realmente se colocam no lugar deles. Porque a rejeição, mesmo imaginária, dói. Analisando com equilíbrio, travestis carregam um peso que faz os nossos problemas parecerem ínfimos. Imaginem uma adolescente, travesti, no exame do Exército.

Nos meus 18 anos vi isso de perto: um rapaz, já com corpo feminino, maquiagem e roupas de menina, exposto a um batalhão de dezenas de garotos e submetido aos olhares maliciosos dos soldados, que passavam por ele com sorrisinhos de canto de boca.

Acredito que toda a vergonha, a humilhação e o medo, substantivos abstratos, tenham se personificado ali, naquele momento. Talvez a moça/rapaz não tenha se sentido tão mal, talvez até tenha tirado de letra. Pode ser que o fato tenha incomodado mais a mim do que a ela.

Mas é só pra ilustrar que o dia-a-dia dessas pessoas é, certamente, bem mais complicado que o nosso. Atividades normais, como ir ao supermercado ou à farmácia, comer em um restaurante, comprar uma coca-cola na esquina, podem se tornar experiências profundamente penosas.

Imaginem fazer academia, ir ao dentista, comprar sapatos de salto... Já viram travestis em lojas de departamento? Eles estão condenadas a viver à margem. Por isso a grande maioria acaba indo parar nas esquinas das ruas cariocas, submetidas à violência e à humilhação.

Quanto mais parecidas com mulheres (sem pêlos, gogó, sinal de barba, voz grave, sem formas exageradas), maior a possibilidade de sucesso. É o caso de Roberta Close, Rogéria, Ruddy, Jane de Castro, entre outras. Os postos de trabalho, entretanto, ainda são restritos, e estão no universo dos negócios voltados para a beleza.

Em um caso como o do Ronaldo Fenômeno, a tendência é acreditar que os travestis são culpados. Pode ser que sejam culpados sim (pela acusão em relação às drogas, não ao sexo, claro). Mas antes mesmo de se defenderem, já estão na desvantagem. E o povo gosta, tem notícia no Jornal Nacional e no Globo. É provável que revistas semanais também explorem o assunto. Agora, alguém se lembra da última matéria abordando violência contra travestis? Acontece todos os dias...

Hoje saiu outra notícia falando da Operação Copacabana, que tem a pretensão de acabar com a desordem no bairro. O título, na versão online do Globo é “Operação em Copacabana prende prostitutas”. Mas a legenda da foto não deixa por menos: “travestis também foram detidos”. Pronto, taí a palavrinha mágica que faz atrai os olhos e o imaginário dos leitores.

29 de abr. de 2008

O enrolado caso

Foto: AP/El Pais

Pai que joga filha pela janela, epidemias, tiroteios. Confesso a alienação, mas prefiro mesmo não saber de todas as desgraças nacionais. Mas infelizmente a sociedade da informação não deixa meus ouvidos isentos. 

Conversando hoje com a minha mãe no telefone ela pergunta "E aí, deu nos jornais daí a estória do Ronaldo com os travestis?". Fui dar uma verificada e não achei. Fui no O Globo e estava tudo lá: video, entrevistas, tudo com destaque na primeira página.

Nao vou entrar no mérito moral. É hipocrisia negar o primeiro pensamento que pelo menos 90% dos leitores devem ter tido: "o cara pode ter (e tem!) lindas mulheres e vai logo pegar um traveco na rua?". Se ele se drogou tambem é problema dele, assim como as suas taras. Acho que a chantagem ali está bem clara. Como a própria Andrea afirma, ele pagou mil reais a mais para cada uma das outras prostitutas. Sem mais rodeios, o que mais me chocou foi a seguinte parte do depoimento da Andrea:

"Eu fiquei duas horas desenrolando com os policiais"....
E depois:
"...nao sabem o que eu tive que fazer para desenrolar"

Nao que ali estivesse alguma novidade. Mas dar como normal, imperceptível, é gravíssimo. Acho mesmo que chegará um dia que qualquer forma de corrupçao ou suborno será uma grande trivialidade, "a parte do jogo", que nem taxa de serviço de restaurante. Infelizmente nao achei nada nos jornais comentando esse suborno - o famoso "desenrolar", como a própria Andrea disse. O "fenomeno" esta lá, exposto nos jornais pela sua subversao (ou alguem achou mesmo que ele queria dar "calote"?). E os policiais que "deixaram passar" os 320 reais de pó, onde estao? Provavelmente na blitz mais proxima de voce - ou ainda sonhando com o pagamento da noite passada?



Olha o vídeo

Achei um vídeo do Matanza bem parecido com o show que fui.
Dá uma olhada: http://www.youtube.com/watch?v=Bp8NR5rFmSc&feature=related
:o)

Uma noite, hum, digamos, inesperada

Depois de um dia cheio, almoço em família, jogo de futebol (sem comentários), acarajé e táxi pra casa, já se passava das 20h do domingão, e de repnte meu telefone tocou. Era Priscila, uma amiga querida que me chamou para fazer companhia a um show na Lapa, do ladinho da minha casa. Fiquei na dúvida, pois já estava preparada psicologicamente para ficar em casa vendo filme do Jim Jarmusch, maaaaas como sou uma pessoa, hum, digamos, impulsiva, lá fui eu. Quando chegamos ao Teatro Odisséia dei de cara com o look da galera e, percebi, que eu era, hum, digamos, diferente. Estava de vestidinho rosa floridinho, com uma bolsinha de mão também florida. Todos, eu disse, t-o-d-o-s os presentes estavam de preto ou cinza beeem escuro. Mas tudo bem, sou do tipo que faz tipo, então me fiz de distraída, deu certo.
Entrei ao som de Mostros do Ula Ula, que abriu a noite de lançamento do DVD do Matanza, lançado pela MTV e Deck Disc. Guitarra, baixo e bateria anunciam a “porrada”. Comecei a sentir meus joelhos dobrarem e minha cabeça mexer. Algo parecido com o que o funk faz com as cadeiras. Não dá pra se conter. A banda é boa, rapá! Eles são os pais do Contrycore - mistura de Jonhy Cash com Hardcore. Pesado e bom. A platéia foi ao delírio. Jimmy, o vocalista ruivo barbudo de quase dois metros, entrou calado. Ele faz cara de mal. Eles gritam. Ele olha. Eles gritam. Ele começa. Eles começam. A roda se abre no meio da platéia e uns se jogam contra os outros numa “dança” quase tribal. Difamação, xingamento. Esculhambação, palavrões. Os versos das músicas na voz rouca e grave do irlandês, eram quase inaudíveis. Mas eu fiz leitura labial e entendi pelo menos 70%.
E por falar em porcentagem, pelo menos 85% dos espectadores eram homens. As poucas meninas ficavam pelos cantos, em cima de cadeiras, amparadas pelos namorados, ou até aclamando a banda na frente do palco. Contudo, a pista era mesmo deles. Um me chamou a atenção, devia ter uns 1,80 cm de largura, tinha cabeça raspada e um bigode a lá “seu Leôncio – do pica-pau”. Ele só empurrava quem chegasse perto. Um deles subiu no palco e se jogou. Seu Leôncio, com toda sutileza, deu-lhe um chega-pra-lá que o moçoilo só foi aparecer de novo lá no finzinho da música, e lá atrás, bem longe do el bigodon. Me-do!

Foi uma noite, no mínimo, peculiar. Me diverti e dancei bastante. Recomendo. Ah! Nessa tal rodinha, ninguém se machuca, não viu. Eles estão lá por que querem, só se empurram. Sei lá por que. Me lembrou aqueles bailes funks de antigamente (será que existe até hoje?) que o povo ia pra brigar, lado A x lado B. Porém, o hardcore me pareceu ser mais, hum, digamos, leve.
:o)

E fica aí um dos versos que não me sai da memória:

Quanto mais feio, quanto mais sujo
Quanto mais forte o bafo
Mais ela gosta de mim
Quanto mais feio, quanto mais sujo

26 de abr. de 2008

O que há de errado na platéia?


O telão da direita mostra uma sala de teatro com poltronas vermelhas, poucas delas ocupadas por comportados espectadores. No lado esquerdo, outro telão mostra o que parece um bar, onde homens de terno ou camisa social e mulheres de preto circulam, se juntam, riem, voltam a se sentar e bebem cerveja. No primeiro telão, uma moça de vestido cinza anota alguma coisa num caderninho azul. Um homem ao lado dela comenta, em português: "Olha como as pessoas são felizes em Londres!", referindo-se à imagem que aparece no telão da esquerda.

Atrás dos telões, um homem e uma mulher estão sentados numa mesa. No palco, as luzes estão apagadas. Eles são atores, a princípio não começaram a atuar, mas a peça já começou. Ela acontece nos telões, o da direita mostra a sala de teatro do Oi Futuro, no Rio de Janeiro, o da esquerda mostra o Soho Theather Bar, em Londres, e nós, a platéia londrina e a carioca, incluindo eu, de vestido cinza e caderninho azul, somos parte dela.

A moça atrás de mim dá tchau no telão brasileiro. Um grupo sentado na mesa do fundo do bar responde com acenos no telão inglês. Ela teve a mesma idéia que passou pela minha cabeça quando recebi o convite para ver a peça: se tivesse tido tempo, poderia ter convidado minha amiga Andréa, que mora em Londres e é colaboradora-fundadora deste blog, para participar da peça comigo, eu no Oi Futuro e ela no Soho Bar.

19h. A porta do teatro brasileiro se fecha. Os produtores já tinham avisado que a peça começaria na hora, pois "os britânicos são pontuais" e, como a peça acontece no Rio e em Londres ao mesmo tempo, a pontualidade britânica seria a chave do sincronismo. Pura ilusão dos produtores. A peça havia começado dez minutos atrás.

Os telões alternam imagens dos atores nos palcos inglês e brasileiro e imagens das platéias. De repente, um inglês da platéia coloca uma cartaz em frente à câmera com os dizeres "Hello, Tania Grillo, tudo bem?". A fria platéia carioca intimida Tania Grillo, que está atrás de mim, e ela não consegue responder. A peça prossegue.

What´s wrong with the world? faz parte do projeto ://Play_on_Earth_series, realizado pelas companhias teatrais Phila7 (com sede física no Brasil) e Station House Opera (com sede física na Inglaterra). Vale a pena participar dessa experiência, sem acreditar, como diz a diretora do Oi Futuro, que "tentar propor novas relações palco/platéia, novas formas dramatúrgicas e novos diálogos com o que acontece no mundo é o que se espera do teatro do século XXI". Espera-se isso também, mas não é a tecnologia em si e nem só ela que dará novos contornos ao teatro.

Em certo momento, um dos atores brasileiros explica sua função nessa experiência que é, acima de tudo, tecnológica, de como a tecnologia reconfigura noções de tempo e espaço: "A minha função nesse momento - se é que o momento existe - é entretê-los. Fazê-los confundir os fatos, se é que os fatos existem". Mas a platéia brasileira não entrou na viagem. Ao fim do espetáculo, o telão brasileiro exibia bater de palmas constrangidos, em contraste com os gritos e aplausos do telão londrino.

A platéia brasileira constrangeu minha experiência, assim como a de Tania Grillo. Saio da sala, mas Tania continua lá, na platéia vazia, e agora sim toma coragem, joga beijos, pula e dá tchau para seus amigos londrinos.


P.E. (pequenas epifanias): Depois do teatro, quando chegava ao Largo do Machado para pegar um ônibus para Niterói, avistei o 996, ao longe, se preparando para sair do ponto. Corri como uma maluca e consegui entrar no veículo lotado. Qual não foi minha surpresa ao encontrar minha amiga Andressa, que também escreverá nesse blog, sentadinha no chão do ônibus. Ela me revelou: "Já tinha chegado no ponto há muito tempo, perdi o primeiro ônibus que passou e pensei que foi o destino, o ônibus que perdi iria explodir ou eu encontraria alguém no segundo ônibus". Resultado, uma ótima conversa, que continuou na minha casa, até as onze da noite.

25 de abr. de 2008

O eterno pinga-pinga




Quem disse que só chove em dia nublado? Aqui no Centro do Rio, por exemplo, tem chuva o ano todo. E contraditoriamente chove mais quando o dia está claro, como hoje. Antes fosse água do céu, que renova as nossas energias. Mas aqui no Centro é água de prédio mesmo. De ar-condicionado. Suja e quente.

A explicação para tamanha bandalheira é muito simples. É que grande parte dos administradores/síndicos dos edifícios locais ainda não se tocaram para uma regra básica da boa educação: não se deve fazer com os outros aquilo que não se deseja para si próprio. Isso sem falar, claro, na falta de fiscalização dos órgãos municipais.

Porque não sei se vocês sabem, mas aqui no Rio existe uma lei, apelidada de Lei do Pinga-Pinga (nº 2.749/99), que obriga os prédios a instalarem calhas protetoras e canos plásticos para captar a água gerada pela refrigeração. Niterói também tem lei semelhante, a de nº 2.212/2005.

Em caso de descumprimento, o infrator estará sujeito à multa no valor de 125,4 unidades fiscais (UFIRs). Até hoje, que eu saiba, poucos foram penalizados. Até porque ninguém reclama mesmo, a gente se acostuma com as mazelas da vida urbana. E para um grande edifício comercial do Centro, 125 UFIRs (R$ 228,25) não são nada.

Para os efeitos da lei são considerados infratores o proprietário, o titular do domínio útil ou o possuidor do imóvel, conforme o caso. O condomínio responde solidariamente quando constatada irregularidade em edificações residenciais multifamiliares, comerciais e mistas.

Não sei como anda o cumprimento da lei em Niterói. Aqui, ela definitivamente não pegou, como dezenas de outras. E com quem reclamar? Você pode entrar em contato com a Coordenação de Licenciamento e Fiscalização (2503-3683) ou com a Ouvidoria, ambos da Prefeitura.

Hoje, na Coordenação, me atendeu uma senhora. Depois de alguma espera, ela me disse bem assim: “Desculpa, meu filho, tava botando minha marmita pra esquentar, aí demora um pouquinho”. Nada contra, afinal era horário de almoço mesmo. Mas a situação só demonstra a displicência com que o contribuinte é tratado pela municipalidade.

Minha reclamação (um prédio na rua México, perto do nº 156) ganhou o número 23.797. Ela entrou numa fila. Novamente a sinceridade da atendente: “Olha, vai demorar um pouquinho, a sua reclamação segue agora para um programa de agendamento, aí um fiscal vai ao local verificar. Mas pode ficar ligando toda semana pra saber”. Você quer saber que prazo ela me deu para a solução do problema? Pelo menos um mês...

Todo mundo erra sempre

Como jogar dinheiro fora e pagar mico com design.

Via Pedro Dória.

Recife no sassarico

"A maquiagem pode transformar a mulher? Sim ou não? Ligue agora para o Interativo e dê sua opinião!!!" Enquanto o SBT local recolhia as respostas, moças eram maquiadas por uma senhorinha roliça ao som das atrações divulgadas: os Vilões do Forró, Petrúcio Amorim e Sassaricando. Segue o baile.

A resenha do programa foi feita no Leite, restaurante de 1882 que é uma espécie de Lamas mais arrumadinho. Fica na balbúrdia do Centro, entre lojas de telefone celular e saquinhos com peixes ornamentais. Pratos honestos, sobremesas mais ainda.

Ali perto, no Bairro Recife, a travessia entre o Marco Zero e as esculturas de Brennand é feita no bote de Seu Severino, que aproveita a companhia (R$ 2, ida e volta) pra elogiar Lula e se dizer prosa dos 42 anos como barqueiro.

Convidei pra ir ao Sassaricando à noite, mas disse que não poderia (“Durmo cedo”). Os aplausos loooongos e intensos do Teatro de Santa Isabel lotado – belíssima construção da segunda metade do século 19 – resultaram em lágrimas de esguicho em todo o elenco. Reação igual só se viu em Niterói e Brasília.

Do repertório, aplausos especiais para Criado com vó e O teu cabelo não nega, duas marchas locais, a segunda “emparceirada” por Lamartine Babo – que aproveitou um refrão que o Recife inteiro já cantava e fez a segunda parte.

Na platéia, o estado maior do frevo foi anunciado no fim do espetáculo: o cantor Claudionor Germano e o maestro Duda.

Por falar em frevo, o belo samba Recife, cidade lendária (poema de Manuel Bandeira musicado por Capiba) tem gravação arretada de Chico Buarque e Raphael Rabello. Durante a audição, sugere-se abstrair o videozinho sem vergonha que cobre a música.

Aliás, foi experiência curiosa ouvir este samba em Olinda, enquanto tomava um café na parte baixa, imaginando a fervura do carnaval por aquelas ruas. Ali do lado, conheci o Museu Mamulengo – Espaço Tiridá. Por injustos R$ 2, fiz visita guiada pela história de Mateus, Catirina e Tiridá, entre outros bonecos. De quebra, inda parei na vista da foto.

Do vendedor de coco em frente ao hotel: “Aqui em Boa Viagem dá mais tubarão do que mulhé feia. Olhe em volta... Mas olhe mesmo. Olhou? Pronto. E aí... Tá com medo? Das mulhé ou dos tubarão?”

Por fim: alguém aí tem a receita de bolo de rolo?

24 de abr. de 2008

As belas leis insuficientes


O Brasil é realmente o país das leis mais bonitas do mundo. Nossos códigos ambientais e do consumidor estão entre os mais modernos do planeta. Temos outras leis maravilhosas, de fazer inveja a muito país dito desenvolvido. A papelada judiciária, porém, não tem qualquer efeito de fato. As razões são variadas, mas convergem para quatro pilares fundamentais: falta de educação, fiscalização ineficiente, corrupção institucionalizada e impunidade recorrente. 

Outras servem apenas para tirar o sofá da casa, lembrando daquela piadinha em que o português pega a mulher com o amante no sofá da sala e em vez de expulsar a mulher, joga fora o móvel. Isso ocorreu quando assassinaram uma professora em um posto de combustível na Tijuca durante um assalto a um caixa eletrônico instalado dentro da loja de conveniência. O nosso prefeito bobalhão e blogueiro, na época, baixou uma norma para proibir caixas eletrônicos em postos como se isso fosse resolver o problema da violência.

Agora, a Medida Provisória 415/2008 (mais uma no país das MPs) proíbe a venda de bebidas alcoólicas nas estradas federais. Ou seja, mais uma vez se podam os galhos da questão enquanto a raiz continua podre. Não há estudos concretos, mas estima-se que quase 50% dos acidentes graves de trânsito no país sejam provocados pelo excesso de álcool. Isso em um país onde 35 mil pessoas morrem por ano vítimas do trânsito em números que desprezam as mortes ocorridas fora do local do acidente – ou seja, se o sujeito faleceu no hospital ou a caminho dele, não conta.

Pois bem, o motorista agora não pode mais comprar bebida na beira da estrada. Mas quem vai proibir colocar um isopor no seu carro com diversas latas de cerveja? Ou de malocar aquela garrafa de Johnny Walker embaixo do banco? Ou simplesmente de encher a cara e pegar o carro para viajar? O que faz mudar este comportamento é a consciência e a educação. Se punição e proibição resolvessem alguma coisa, esse país seria a oitava maravilha do mundo. Há diversos radares espalhados na cidade, multando aos borbotões e enchendo os cofres da prefeitura e nem por isso o número de acidentes diminuiu.

É a mesma coisa com o cigarro. Transformaram os tabagistas em vilões da saúde depois de encherem os nossos ouvidos e olhos com propagandas sobre o cigarro com a imagem do fumante como um poderoso. Pois bem, agora não se pode fumar em aeroporto, shopping, restaurante, nem no inferno. O consumo de cigarro por acaso diminuiu? Eu mesmo jamais deixei de fumar. Onze horas de viagem em um avião, antes mesmo de pegar as malas eu ia para fora do aeroporto onde fazia 20 graus negativos para acender meu cigarro. Conheço muito pouca gente que parou de fumar por conta dessas restrições. Eu mesmo parei pela consciência de que a nicotina me faz mal e não porque não podia fumar no restaurante.

Vou recorrer a um lugar-comum, me perdoem, mas a educação é a base de tudo, inclusive de um trânsito mais seguro e menos violento. É conscientizar os atuais e os futuros motoristas dos riscos da combinação álcool-direção e de outras imprudências. Curiosamente, a educação no trânsito é uma lei que não é respeitada nem pelos próprios governos. O Código Brasileiro de Trânsito prevê uma disciplina destas como obrigatória no currículo da educação fundamental. Não conheço uma escola pública sequer no Rio que lecione tal matéria. 

E o Estado, além de não aplicar o que promulga, também não fiscaliza o que já existe. É difícil acreditar que a Polícia Rodoviária Federal vai conseguir fiscalizar estabelecimentos em 61 mil km de rodovias federais. E sempre tem aquele comerciante espertalhão que vai esconder umas cervejinhas e umas pingas no canto do balcão e oferecer para os clientes “vips”. Não há como controlar isso. Um motorista ciente de como o álcool afeta os reflexos, pode ser mais eficaz ao recusar bebida quando estiver dirigindo.

Isso sem contar a famosa molhadinha na mão do guarda que tanto condenamos, mas cuja maioria não hesita duas vezes em praticar para livrar a cara. A corrupção tão usual contribui ainda mais para esse quadro assustador. Aliado à sensação de impunidade, a situação piora. Hoje, um louco pode atropelar e matar seis pessoas em um ponto de ônibus, desembolsar 100 pratas de fiança e ir para casa assistir TV. Fora os casos famosos de jogadores de futebol que mataram e feriram pessoas por estarem dirigindo de forma imprudente e continuam soltos por aí.

Estou muito longe de ser exemplo para alguém. Muito menos o senhor da razão. Adoro beber meu uisquinho e minha cervejinha. Quando estou dirigindo, acabo me regrando – e me punindo, pois acho que não deveria nem ter bebido aquilo tudo. Muitas vezes já deixei o carro onde estava e fui de ônibus para casa por ter bebido além da conta. Fora as vezes que terminei uma noitada e fui dormir dentro do próprio carro estacionado para acordar em melhores condições. O trânsito é uma verdadeira guerra – aliás, mata mais que muitas guerras. E não é uma lei que proíbe venda de bebida na estrada que vai resolver. Sem querer ser planfetário, mas como tudo nesse país, no trânsito a educação também tem de ser prioridade.

Elevador Larceda - Salvador

Sempre tive vontade de tirar essa foto :o)

Você já foi à Bahia?

Acabei de chegar da bahia, mais precisamente, Salvador.

Estou encantada com o povo imensamente receptivo, com as praias cheias de coqueiros, que mais pareciam miragens, ladeando a bela cidade crescida desordenamente. O clima tenso que todo mundo tanto me falou, não vi, não. Deve ser pela baixa temporada. Agradeci todos os dias pela lua, linda, amarela e cheia. O Pelô é barril (gíria nova!!), ou seja, muito perigoso, mas só à noite (por exemplo, um policial veio nos avisar que era o último do turno, e nos aconselhou a não andar pelos becos estreitos. Ficamos pelos largos). A lua (de novo) abençoou o passeio, tudo lindo, nem tão caro. Quase comprei quadros, mas não coube no bolso. Trouxe uma camisa escrita "Bahia - Salvador". Turista que se preza tem de levar souvenir.

A paisagem natural é incrivelmente bela, mesmo. Toda esquina você cruza com uma praia. Toda esquina. Se quiser uma mais "bonita" ou deserta, pronto, 40 minutos e está lá Itacimirim, um paraiso bem cuidado. No caminho, dunas branquinhas.

Mas a minha maior lembrança de Salvador são as comidas, fartas, picantes e deliciosas!! Devo ter engordado uns três quilos, sem culpa. Não dá pra fazer pouco caso do acarajé da Dinha, ou da moqueca mista (camarão e peixe) do Mercado Modelo. O que dirá do pão delícia das padarias Perini, ou então o siri na praia da barra. Impossível não comer porções de lambreta nas areias de Stella Maris, ou o sorvete da Cubana, no Pelourinho. Engordei sim, mas amarrei a fitinha na igreja do Bonfim pedindo pra gordurinha sumir. Acredito nos orixás (risos).

É tanta coisa que não dá pra contar assim não, minha gente. E fica meu convite e homenagem a essa incrivel viagem:

Você Já Foi a Bahia? (Dorival Caymmi)

Você já foi à Bahia, nêga?
Não?
Então vá!
Quem vai ao "Bonfim", minha nêga,
Nunca mais quer voltar.
Muita sorte teve,
Muita sorte tem,
Muita sorte terá

Você já foi à Bahia, nêga?
Não?
Então vá!
Lá tem vatapá
Então vá!
Lá tem caruru,
Então vá!
Lá tem munguzá,
Então vá!
Se "quiser sambar"
Então vá!

Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas,
Do tempo do Imperador.
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito,
Que nenhuma terra tem!

Impressões de viagem São João-Bonsucesso

24 de abril

Costumamos nos referir a avenidas e vias expressas como "artérias da cidade" (ou seja, elas transportam o sangue - os carros - do coração da cidade para todas as partes do corpo; acredito que de manhã deveriam ser chamadas de "veias", pois nos levam em direção ao caos urbano, e à noite nos trazem de volta para longe do centro). Uma visão aérea da cidade deve mostrar os pontos em que o sangue da cidade corre mais devagar, como um corpo com artérias entupidas, prestes a romper, onde estamos presos.

23 de abr. de 2008

Fernando paraguaio e a redescoberta da esperança

Embora já tenha o meu original, preciso confessar: estou apaixonada pelo Fernando paraguaio. Quem me conhece sabe que sou um pouco católica, muito apostólica, nada romana, e cegamente fascinada pela Teologia da Libertação, que aprendi junto com o abecedário, graças à mamãe.

Cresci vendo-a liderar campanhas pastorais na comunidade do Jacarezinho e, já na adolescência, “nas invasões” em terrenos baldios na zona Oeste do Rio. Foi assim que fui apresentada a Deus – Deus que ergue parede na favela, faz prato de sopa de entulho, lava feridas de desconhecidos, divide por cem uma caixa de remédio. Um Deus que não é doutrinário, nem institucional.

“Pelo amor de Deus”, “Vai com Deus”, “Fique com Deus”, “Deus te abençoe”, “Deus te ouça”. A base da Teologia da Libertação consiste em resgatar a riqueza da espiritualidade dos pobres, tão evidente em expressões como essas. O Frei Betto, alicerce da libertação, diz que para entendermos Deus temos que esquecer o Deus do catecismo, perfeitíssimo, cantor de ópera e cair no samba com o Deus tangível e companheiro.

Por mais que alguns insistam em apartar política de religião, a associação direta é inevitável. Mesmo que na consciência de Cristo houvesse apenas motivações religiosas, todas os seus atos tiveram conseqüências políticas – que abalaram os poderosos da época e desencadearam em tortura seguida de morte com requintes de crueldade. Logo, todos os cristãos são discípulos de um prisioneiro político.

Pio XI, que Deus o tenha, costumava dizer que “a política é a forma mais perfeita de caridade”. Sou uma crédula incorrigível, que ainda acredita em saci e na esquerda latino-americana. Às vezes, denúncias de corrupção e tortura abalam os resquícios de fé. Quando isso ocorre, impotente e aflita, rezo – não pela vida eterna, mas pela libertação imediata da desesperança.

“Fernando Lugo, ex-bispo, adepto da Teologia da Libertação, derrotou os colorados e é o novo presidente do Paraguai”, anunciou o locutor da rádio AM no início da semana. E eu, rindo da redescoberta da esperança, sussurrei baixinho no ônibus lotado: “Amém”, que em hebraico quer dizer “Sim, o mundo é bom”.

O maioral




“Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas, se dispõe do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido. Escreva depressa: Pixinguinha.” (Ary Vasconcellos)

Enquanto monto uma lista de recordações recifenses pra repartir com os amigos (a postar em breve), aproveito o dia de hoje pra registrar minha homenagem ao maior nome da nossa música popular – revolucionário como compositor, arranjador e instrumentista (primeiro na flauta, depois no sax).

A homenagem vai no santinho que o compositor Carlos Careqa fez para distribuir pelo Brasil (postado aí em cima) e neste Carinhoso (letra de Braguinha) interpretado por Paulinho da Viola e Marisa Monte.



Vida de jornalista




27 de outubro de 2002. Toca o telefone na redação.

_ Estou ligando para avisar que vamos todos ficar sem casa.
_ Ahn?
_ Sim, minha filha. Se o Lula for eleito hoje, além de nos expulsar das nossas casas, ele vai trocar o Hino Nacional do Brasil pela Internacional Comunista.
_ É mesmo?
_ Você não sabia disso não?


Algum mês de 2005, durante a crise do mensalão. O telefone toca de novo. Uma leitora puxando conversa. Mais: queria escrever uma carta, e precisava entregar nas mãos de um jornalista qualquer. Ao me ouvir dizer apenas o frio endereço do jornal, fez o lamento:

“Mas eu quero entregar em mãos. Quero que o jornalista abra a carta e leia na minha frente, me dizendo o que achou. Antigamente, no JB, os jornalistas nos recebiam. Quem você acha que eu posso procurar quando chegar aí?”

22 de abril de 2008. Chego de férias e pego a correspondência. Entre os contracheques atrasados, faturas de plano de saúde e releases de assessorias de imprensa, uma carta escrita à mão (não é raro recebermos cartas, mas confesso que era mais freqüente quando trabalhava no Jornal de Bairros, onde a relação com o leitor é mais intensa ainda). O remetente mora na Tijuca e isso já pode ter algum significado (tenho uma amiga que sempre nos lembra que escrevemos para o “militar de bermudas tijucano”).

A carta foi escrita no dia 31 de março (data, por sinal, cara a alguns militares) e postada no dia 1 de abril. Ao rasgar o envelope, a primeira surpresa: a minha foto (ilustrando o post) na coluna "Por dentro do Globo", um espaço para os leitores conhecerem melhor os “bastidores” de nossa redação e das reportagens. Logo pensei: poxa, taí, se minha mãe não tivesse guardado e pendurado a coluna na geladeira aqui de casa, seria uma boa oportunidade agora de arquivar o recorte de jornal. Mas, em seguida, o espanto: assim como recortou e mandou para mim, ele pode ter guardado essa foto em algum arquivo secreto e morto de seu apartamento, e com que estranhas e perversas intenções!

Junto da folha de caderno com o escrito em letra de fôrma, outros dois recortes do jornal, de duas colunas do Elio Gaspari, estes sim, dignos de arquivo. À carta:

“Prezada jornalista
Cláudia Lamego.
Saudações.

Diante de sua ativa participação na difusão de fatos dos idos de 1968, vai aqui uma sugestão.”

Pausa. Ativa participação? Bem, fiz uma matéria, tinha programadas mais duas, fiquei doente, entrei de licença, logo depois de férias. Que feitiço terá usado esse leitor para me afastar de minhas atividades profissionais e parar com a “difusão de fatos” de 68 (sou do tempo em que não precisávamos escrever o ano completo)?

“Possivelmente por você ser jovem e não ter tomado conhecimento das entrelinhas da história ou, até mesmo por imposição dos patrões, notou-se na coluna “Por dentro do Globo” que ouve (sic) uma tendência a mostrar-se apenas uma face da moeda.
Se foi por determinação superior, o problema já conduz para a subserviência, falta de independência, por medo de perder o emprego. Não gostaria de acreditar nisso. Prefiro a falta de informação”.

Aqui vale um parêntese para falar da matéria citada. Fizemos duas páginas de um domingo de março sobre os jovens de 68 e os de 2008. Numa delas, as repórteres Soraya Aggege, de São Paulo, e Letícia Lins, correspondente em Pernambuco, tentaram mostrar uma série de diferenças de comportamento, após 40 anos do mitificado ano que culminou no Ato Institucional número 5. Na página que me cabia, promovi um encontro entre duas representantes dessas gerações: a cineasta Lúcia Murat, que foi militante, presa e torturada durante a ditadura; e a estudante Thaís Amaral, militante de ONG, engajada em projetos sociais da comunidade onde mora, o Morro do Preventório, em Niterói. As colunas do Elio mostravam que militantes da luta armada ganharam indenizações muito maiores, por exemplo, do que pessoas que foram atingidas por ações daqueles, sem nada ter a ver com a luta política deles.

“Aliás, seus patrões na pessoa do saudoso Dr. Roberto Marinho eram, como se diz na gíria, carne e unha com os militares. (...)”

Aqui, começam minhas dúvidas. Quem seriam meus patrões hoje? Não foram eles que, na falta de independência minha, me obrigaram a colocar militantes de 68 no jornal? Carta que segue.

“Para encurtar a conversa, nada melhor do que as colunas do companheiro de jornal Elio Gaspari a respeito.
Portanto, seria muito sadio se você se conscientisasse (sic) da verdade (...).
Se procedermos assim, evitaremos que alunos como a Thaís Amaral (citada na coluna) cresçam alienados pela má informação. Esta seria uma grande colaboração de vocês ao ensino no Brasil, onde se está contando a história da maneira que convém àqueles que se locupletando (sic) às custas do nosso suor. São as poupudas (sic) pensões pagas aos heróis do nada. Construtores de coisa alguma.”

Meu Deus! O que ele deve ter escrito sobre as pensões e indenizações ao Jaguar e ao Ziraldo? Mas, essa é uma outra questão, da qual me abstenho de opinar no presente post.

“Portanto, seja independente (se é que pode) para olhar-se com orgulho no espelho.
Abraços.”

Acabo de ler a carta e penso numa crônica do Nelson Rodrigues (ando a reler as confissões de meu cronista predileto, agora publicadas pela Agir) sobre o Dr. Brito, do Jornal do Brasil, e pesco de lá a frase: “O leitor, que é um simples, não pode imaginar a sombria complexidade de uma redação”.
P.S.: Domingo, se tudo correr bem, publico mais uma matéria da série sobre os 40 anos de 1968.

22 de abr. de 2008

Morenos e morenas (questionamentos semânticos)

A palavra "moreno", em todas as suas formas (os dois gêneros do adjetivo e do substantivo), é uma espécie de signo que, por sua ambiguidade, possui um sedutor vazio de significado, e por isso recorremos tanto a essa palavra.

Diante de uma pessoa que não sabemos se se considera negra, mulata ou branca, dizemos: "Você é morena." Ela pode tanto se definir morena pela cor do cabelo quanto pela pele. O Dicionário Houaiss mantém essa ambivalência. Moreno é, ao mesmo tempo, "que ou aquele cuja pele é escura, apresentando uma tonalidade entre o pardo e o negro" e "que ou aquele cuja cor de cabelo varia entre o castanho-escuro e o preto".

No discurso cotidiano, utilizamos "moreno" de maneira indefinida para evitar mal-entendidos, comumente de ordem racial. É um eufemismo tranqüilizador, que age porque, neste caso, uma única palavra remete a mais de um significado. Em um primeiro momento, quem fala e quem ouve podem ter idéias diferentes do que significa "moreno" naquela fala específica. Para que o diálogo continue, é necessário recorrer a um agente restritivo, uma comparação: "como é fulano de tal?", "ah, ele é moreno", "como quem?", "como beltrano" (esta resposta pode significar que a pessoa é mulata, ou é branca e tem os cabelos negros, ou mesmo que é negra). Assim, evita-se definir a cor - que, pela natureza da nossa sociedade, nem sempre é algo plenamente definido, muito menos essa definição é desprovida de moral.

No discurso artístico, "moreno" se torna uma espécie de arquétipo esfumaçado do brasileiro, sem contronos fixos. Serve tanto para louvar a "Morena dos olhos d'água" quanto para o "pretinho" que é rejeitado por ser "moreno demais". Afinal, a palavra "moreno" parece tão miscigenada quanto o "brasileiro". Ou seja, ela é apenas uma palavra (como brasileiro é apenas uma nacionalidade) cindida em vários significados (como o brasileiro é cindido em várias identidades, sem caráter único). Ela esconde, como a idéia de mestiçagem, uma separação social que evitamos enxergar.

"Moreno" representa muitas das características positivas (a mistura) e negativas (a cisão social velada) do Brasil. Morenos todos nós, mas morenos diferentes.

Aventuras paternas


Minha alma boêmia e rueira poderia achar essa cena inimaginável. Noite de domingo, eu e os dois herdeiros refestelados no chão do quarto assistindo televisão. Só falta mesmo minha futura esposa para dividir esse momento dominical familiar e preguiçoso. Tudo bem. Daqui a seis meses o quarteto estará fixo e completo para estes hiatos raros entre saideiras e pé na rua.
“Pai, vamos ver o DVD do 'George, o Rei da Floresta'?”. Os olhinhos claros e a voz fina interrompem aquele ócio momentâneo e amolecem ainda mais este progenitor já tão vulnerável às investidas melosas daquela menininha. Pronto, estou eu agora refestelado no chão e assistindo ao Brendan Fraser interpretar um Tarzan abobalhado. Rio das risadas da minha filha mais do que das piadas previsíveis do longa-metragem.
Meus olhos vacilam de sono quando sinto aquela pele infantil queimar a minha. “Essa menina está quente demais ou isso é coisa de pai preocupado em excesso?”. Resolvi não me deixar enganar pelas neuroses paternas. Olho para o lado, ela continua a rir do macaco falante que usa óculos, enquanto o irmão mais velho revela todo seu tédio com os olhos perdidos na tela do televisor.
“Tão bem disposta, não está com febre não”, digo isso tentando enganar a mim mesmo. Aquela espoleta em forma de gente brinca com disposição mesmo com 40 graus. Saco o termômetro cor-de-rosa, guardado na necessaire cor-de-rosa, dentro da bolsa cor-de-rosa. “Minha filha é quase uma legalmente loira”, penso eu, em meio a um suspiro de constatação.
O termômetro digital é impiedoso e objetivo. Minhas suspeitas se confirmam e a febre agora é oficial. No relógio, 15 minutos para as 11 da noite. O pai irresponsável que não tem antitérmico em casa nem o remédio de alergia da filha agora vai pagar pela sua displicência. Com muita sorte encontrarei uma farmácia aberta a esta hora pelas redondezas. Arrisco dois telefonemas na esperança forçada de que alguma estar aberta.
Visto a primeira coisa que aparece na minha frente e ganho as ruas já certo da derrota. Olho a primeira farmácia possível de avistar do meu prédio. Obviamente que se estivesse aberta, o letreiro nada discreto chamaria minha atenção. Penso como as drogarias nesse país são espalhafatosas. A ponto de os estabelecimentos mais parecerem lojas de fast-food, vendendo saúde como se fosse um hambúrguer de qualidade e gosto discutíveis.
Arrasto meus chinelos com rapidez até a esquina. Mais uma vez, letreiros escuros. Corro os olhos pelo quarteirão e o panorama é inusitado. Uma churrascaria, duas pizzarias, dois restaurantes, um boteco, um podrão e uma lanchonete abertos. Ou seja, posso comer que nem um porco, beber até cair, mas não conseguirei um Engov.
Bem, pelo menos posso comprar uma flor para minha noiva a qualquer hora do dia, pois constato que o quiosque das plantinhas também não fecha. Curioso. Em um bairro repleto de idosos e cheio de farmácias, não tem um raio de uma drograria 24 horas para eu comprar um simples paracetamol genérico! Tijucano resignado, me dirijo ao ponto de ônibus resmungando toda a sorte de impropérios que me vem à cabeça. Destino: Saes Peña, ou “Praça”, como a raça tijucana costuma generalizar o coração comercial do bairro.
“Pelo menos, qualquer ônibus passa por lá”. Estendo a mão para o primeiro que faz a curva na rua, mas me lembro que não posso embarcar. Só estou com o cartão de débito. Bem que os coletivos poderiam começar a aceitar esse raio de dinheiro de plástico. Mas é por causa desse raio desse cartão que tenho a mania de não andar com dinheiro, sob protestos da minha mãe, que vive dizendo que um dia o ladrão vai me encher de tapa por eu estar sem grana.
Por causa do ladrão, também lembro que não consigo sacar dinheiro. Quer dizer, nenhum cidadão carioca pode tirar dinheiro na rua depois das 22h. Em uma daquelas resoluções em que se tira o sofá da sala, você não é mais assaltado ou seqüestrado entre 22h e 6h da matina. Mas também está fadado a ficar a pé.
Penso em ir a pé até “a Praça”, mas a preguiça me faz voltar para casa. Certo de que vou ter de abrir o cofrinho para juntar os níqueis e pagar a passagem de ida e de volta. O recurso é freqüente. Tanto que o cofrinho não é de porquinho nem tem cadeado. As moedas fazem barulho no bolso conforme os meus passos se apressam. Subo no ônibus com uma sensação de alívio imediato. E curto. Um estrondo sob o assoalho do coletivo provoca um frio na espinha. O ônibus quebrou no meio do caminho.
Esperar outro ônibus da mesma linha depois das 23h na Tijuca é uma tarefa para pessoas pacientes, virtude que jamais me coube. Com o dinheiro contado para a volta, não há outra alternativa senão seguir arrastando meus chinelos. Ainda mais resignado e com o vocabulário de palavrões mais extenso, vislumbro finalmente meu destino. As luzes das farmácias contrastam com as lojas apagadas e os cinemas de outrora, agora dominados pelo comércio e pela religião.
Chego rapidamente a um dos ex-cinemas, onde agora funciona uma farmácia cujo plantão se dá com os funcionários sonolentos atrás de um vidro blindado e um cilindro de ferro para entregar as mercadorias. Com dois sujeitos ainda para serem atendidos, penso na mão-de-obra que é comprar nesse esquema.
Vou até a outra farmácia, essa sim, que fica aberta plenamente 24 horas. Entro, peço os remédios e vou ao caixa já esboçando um sorriso com o dever quase cumprido e antecipando o fim de minha missão paterna. Compro até uma bala para comemorar, já que essas drogarias vendem de tudo mesmo.
Pura ilusão momentânea. O cartão de débito não passa. A máquina impiedosa diz que não há linha disponível para conectar. Lembro logo do comercial da TV do famigerado cartão que expõe uma senhora ao desagravo comercial por preencher um cheque em uma loja de plantas. E estou eu lá há 10 minutos tentando passar o cartão, sem que o cenário fique preto-e-branco de repente.
“Jorge, tem alguém usando a linha?”, pergunta a caixa da farmácia pela terceira vez ao atrapalhado companheiro de trabalho. Minha cara de irritado ganha contornos ainda mais agressivos quando um táxi estaciona na porta do estabelecimento com o rádio na estratosfera ao som de “Créu”. Juro que nunca tinha ouvido a música inteira. Agora, sou forçado a constatar o quanto a canção é idiota.
Nada de linha, nada de cartão, logo se forma uma fila e a caixa passa a atender os seguintes enquanto o Jorge tenta resolver o imbróglio do cartão. Um playboy ansioso paga uma caixa de camisinhas. Em seguida, um companheiro com a bela camisa tricolor paga o mesmo produto. Não tenho como não pensar na minha noiva e no pouco tempo que nós acabaríamos com aquela caixa de preservativos. “Todo mundo vai foder, enquanto essa porra desse cartão fode com a minha paciência ao som do Créu”.
Finalmente, consigo pagar os remédios. Agora, a missão é voltar. Os ônibus por aqui ficam mais raros conforme o passar das horas. Mas eis que surge rapidamente um 415. Entre vans e Kombis paradas no ponto para suprirem a carência dos coletivos oficiais, estico o braço. O insensível ônibus passa direto. Antes mesmo que eu soltasse o xingamento, o veículo pára 200 metros adiante. “Valeu motorista”. E saio arrastando os chinelos de forma mais rápida, pois me nego a correr atrás de ônibus (ainda mais de chinelos).
Quase alcançando o coletivo, eis que desembarcam três adolescentes para quem a noite, pelo visto, ainda vai começar. A luz de freio do ônibus se apaga e o motorista começa a arrancar para eu perceber que ele não tinha parado para mim. Antes que ele se vá totalmente, abro a mão e desfiro um golpe perfeito sobre a lataria oca da parte de trás do veículo. O estrondo não só atrai os olhares do vendedor de balas, que cochilava sob a marquise, mas serve também para o motorista frear.
A irritação é tanta que enquanto ando em direção à porta do ônibus penso nos pedidos da minha amada para relaxar. Minha fisionomia e o vigor do tapa na carroceria, porém, já denunciavam meu grau de irritação. Entro no coletivo e me deparo com uma motorista com um semblante de espanto. Viro os olhos e encontro o trocador igualmente assustado e levantando rapidamente para pegar meu dinheiro. Todos os passageiros me encaram com silêncio.
Calado e com cara de poucos amigos, me jogo no banco do ônibus e penso que realmente devo estar assustador. Gordo, cara de sono, cabelos desgrenhados, uma camisa preta com um Garfield fazendo careta e com as mangas rasgadas, a imagem de um ser estranho tatuada no braço esquerdo, short azul todo ferrado e havaianas. “Saudade da minha noiva. Com certeza ela estaria aqui rindo disso tudo e me fazendo rir”.
Exausto moralmente e fisicamente, abro a porta de casa e a pequena febril abre os braços e o sorriso em minha direção. Não está mais quente como antes. Saco o termômetro cor-de-rosa novamente. Não confio no resultado e apelo para outro termômetro, sem grandes tecnologias e mais convencional. A febre baixou.
“Pai, vamos ver o George novamente?”. As palavras em meio às gargalhadas do irmão adolescente e os olhinhos pidões da caçula me fazem achar graça da saga notívaga a qual tinha acabado de me submeter. Me fazem lembrar de outras aventuras de madrugada por conta do primogênito. E me fez ter certeza que faria tudo novamente. Inclusive, ver mais uma vez o Brendan Fraser se espatifar contra uma árvore.

Entrevista: Carlos Minc


Carioca, casado, pai de dois filhos, apreciador de cinema e apaixonado pelo Rio. A descrição revelaria um cidadão comum, não fosse por uma peculiaridade: além dessas características, a pessoa em questão exerceu quase seis mandatos consecutivos como deputado estadual pelo PT, tem mais de 110 leis aprovadas, participou ativamente da resistência contra a ditadura militar, recebeu prêmio da Organização das Nações Unidas, em 1989, pela luta em defesa do meio ambiente. Atualmente, ocupa o posto de Secretário Estadual do Ambiente, no governo fluminense. Enquanto deputado, conduziu a atividade parlamentar focado em temas como segurança pública, saúde no trabalho e direitos das mulheres, dos negros e dos homossexuais. Aos 56 anos, Carlos Minc angaria fãs não só pela militância política, mas também pela simpatia. "Os gays são alegres, me animam. Vou a todas as paradas e boites, danço muito, abraço e me identifico com as pessoas. Temos uma relação afetiva forte". Em 2000, Minc deu mais um passo para entrar na História da América Latina ao criar a lei estadual nº3.406, que pune estabelecimentos pela discriminação de gays, lésbicas e travestis. Nesta entrevista, o secretário fala dos preconceitos na tribuna, afirma que o Rio tem se destacado nas políticas em defesa dos homossexuais – apesar de ser um dos campões em casos de violência – e critica a lentidão da aprovação, no Congresso, do projeto de união civil para pessoas do mesmo sexo. Minc cita a amizade com o guerrilheiro homossexual Herbert Daniel, fala da pretensão em ocupar a cadeira de prefeito do Rio de Janeiro e dá um recado: "Os gays precisam se mobilizar. Não adianta criarmos a leis se as pessoas não exigirem que elas sejam cumpridas".

Quando você começou a se engajar na luta pelos direitos dos homossexuais? Como está a conscientização dos seus colegas em relação aos direitos dos gays?
M - Eu participei do movimento estudantil na década de 1960, da resistência armada, estive exilado e adotei, desde os 18 ou 19 anos, uma linha libertária, que implicava em ter uma visão de que não haveria transformação social se houvesse opressão dos negros, das mulheres, dos gays, das minorias. Fiquei dez anos exilado, na Europa vivi muito de perto a discriminação em relação aos trabalhadores imigrantes, que eram vítimas dos neo-nazistas, vi albergues sendo queimados. As movimentações com caráter racista e homofóbico eram intensas. Isso acompanhou minha formação cultural e política. Na esquerda, tive um grande amigo, que era guerrilheiro e homossexual, o Herbert Daniel. Ele participou de guerrilhas contra a ditadura junto com Lamarca, era do PT e chegou a se candidatar. Escreveu muitas coisas, era um militante importante. Morreu de Aids, eu estive exilado com ele, era meu amigo, fazíamos parte do mesmo grupo, tínhamos vários amigos comuns. Desde os meus primeiros mandatos eu lutei por essa linha ecológica e libertária.


Como você lida com as resistências na sua atuação parlamentar?
M - Para responder essa pergunta, vou contar uma coisa engraçada que aconteceu e mostra como é a hipocrisia no Brasil. Em 1989, eu ainda estava no meu primeiro mandato, pelo Partido Verde, trabalhando no texto da constituição estadual. A pedido do Herbert Daniel, eu queria incluir, no artigo que fala que ninguém pode ser discriminado por raça, cor, sexo e religião, a questão da orientação sexual. Isso em 1989, imagina! Eu falava com os deputados do interior e eles me falavam: "Não me pede isso. As coisas de ecologia a gente até bota, mas essas coisas de viadagem não dá. Imagina o meu filho numa escola, um professor viado dando aula pra ele e numa dessa o meu filho vira viado também". Nós ouvíamos esse tipo de coisa. Era realmente um atraso cultural e político. Comecei a me dar conta de que o parlamento acaba condensando todos os preconceitos que existem na sociedade. Toda a corrupção aparece ali de forma grotesca e concentrada.


E hoje, está mais fácil legislar em defesa dos gays?
M - Não. Imagine: houve uma manifestação em 2006, quando derrotamos o famoso projeto do deputado Edno Fonseca, um pastor evangélico que queria que o Estado ajudasse os gays a se converterem em heterossexuais, com recursos públicos que seriam repassados a entidades específicas, incluindo a igreja dele. Isso significa que o pastor estava legislando em causa própria, pedindo do Estado recursos do contribuinte. Em nenhum momento ele explicou como essa conversão seria possível, quais seriam os métodos utilizados. Várias vezes eu o provoquei perguntando quais seriam os mecanismos. Quero destacar o seguinte: muitos deputados defendem as causas da livre expressão sexual e das causas gays, mas adotam a seguinte tática: nos seus informativos mais amplos não mencionam o assunto, depois fazem panfletos dirigidos diretamente aos homossexuais defendendo a causa. Tentam ficar dos dois lados: para o público mais conservador não dizem que são contra, mas omitem. E depois fazem um texto dirigido ao público gay criticando a homofobia. O fato é que tem muita gente que é de esquerda e é preconceituosa. Tem muito estudante que está na luta pelo passe livre nos ônibus, é engajado mas preconceituoso.


Você falou em botar a cara à tapa. Os gays estão mais corajosos?
M - Sem dúvida. Quando aprovamos a Lei da Camisinha (nº 2929/98), que determina que todos os quartos dos motéis cariocas tenham pelo menos três unidades de preservativos, com selo de garantia do Inmetro e a preço de custo, colocamos uma camisinha de 18 metros no obelisco da avenida Rio Branco, o símbolo fálico da cidade. Há sete anos atrás fizemos uma manifestação em um hotel de Niterói, que queria cobrar duas diárias de um casal gay que foi comemorar o namoro no local. O estabelecimento recebeu multa de R$ 22 mil e, para não piorar a imagem, o gerente resolveu dar duas noites gratuitas na suíte presidencial para o casal. Então eu acho que, como ninguém lê Diário Oficial, as pessoas só sabem que uma lei existe se você agita a bandeira delas, se leva a mídia, se torna a lei conhecida e constrange aqueles que insistem em discriminar e desconhecer as leis. Por isso é que no Brasil a maior parte das leis têm essa vocação inexorável para se converter em alimento de cupim na gaveta dos burocratas e dos poderosos de plantão. Fazemos campanhas do "Cumpra-se" justamente para tirar essas leis do papel.


As passeatas gays são um reflexo da mobilização da sociedade em relação aos direitos humanos?
M - Sim, acho que elas mexem com a cultura, com os valores. Fui em todas as do Rio, desde as primeiras, com 400 pessoas, até as mais recentes, com 800 mil a 1 milhão de participantes. Fui convidado por várias cidades mas, infelizmente, não tenho pernas para ir a todas. No interior, houve oito ou nove, mas eu fui em três. Cidades que nunca tiveram manifestações do gênero estrearam com grandes passeatas. Municípios conservadores estão aderindo. Grande parte das pessoas que vão às ruas não é gay, perceberam que é uma festa em prol da liberdade, pelo respeito, pela pluralidade. É uma festa e isso é ótimo, porque de caretice chega a vida, os partidos, o parlamento. É uma festa, mas com conteúdo político, celebra a pluralidade e vai contra o preconceito. Você combate a homofobia com discurso, com artigos, com leis, com ações como a do hotel em Niterói e com afeto. Combate também criando entidades de apoio como o Disque Defesa Homossexual (DDH), inaugurado em 1999, no Rio.


Quando se fala em luta contra o preconceito, como o Rio está em relação aos outros estados do Brasil?
M - Em relação aos outros estados, o Rio tem uma característica curiosa: por um lado apresenta números elevadíssimos de violência contra gays, lésbicas e travestis, registrados nas mais diversas delegacias e, mesmo assim, subavaliados. Muitas vezes uma pessoa é agredida e não registra, ou registra mas não caracteriza a homofobia como causa da agressão, o que acarreta em uma subnotificação. Ainda assim, o Rio só perde para Pernambuco em casos de homofobia. Mas, curiosamente, é um dos mais avançados em termos de legislação. Criamos aqui a primeira lei contra a discriminação, a primeira lei de reconhecimento de direitos previdenciários para gays, o primeiro DDH. Temos a segunda maior passeata gay do país. Se considerarmos o número de pessoas na passeata por habitante, o Rio está na frente de São Paulo. Uma cidade linda, do carnaval, da moda, da cultura, capital cultural, de música, da ecologia, chegou a ser campeã de violência, agora é vice-campeã. Talvez até por isso consigamos avançar com leis pioneiras. De forma contraditória, convivem no Rio um grau muito grande de violência e de resistência à violência.

Você disse que não basta criar as leis, é preciso mobilização e fiscalização do povo. Como as pessoas podem colaborar efetivamente?
M - O que faz a coisa melhorar é o conjunto da obra. Uma boa passeata do Orgulho Gay, por exemplo, ajuda a criar uma lei boa. Uma lei boa, como a do DDH, estimula as pessoas. Há uma interação entre um bom artigo, uma boa manifestação, uma boa lei, uma boa passeata. Vai-se criando cultura dentro da diversidade. Essas manifestações conseguem ter alcance nacional, servem de incentivo para outros estados. Por exemplo, quando aprovamos a primeira lei contra a discriminação, saiu matéria do Jornal Nacional. As passeatas todas são assunto de matérias nacionais. Essa reportagem do hotel de Niterói teve alcance nacional.


Como você está vendo a evolução das leis pelos direitos dos gays no Brasil? A união civil está longe de acontecer?
M - A Marta Suplicy entrou com esse projeto em 1995. Estamos em 2008, portanto faz quase 13 anos que o projeto está tramitando. É claro que é mais difícil aprovar uma lei de alcance nacional. Aqui a gente tem os artistas, tem a TV Globo, eu sou um cara descolado, faço alianças. Em nível nacional há representantes de áreas mais atrasadas, existe bastante conservadorismo. Mas acho que houve má condução do projeto. Houve um momento que um dos relatores do substitutivo foi o Roberto Jefferson, que acabou mostrando quem ele era e foi cassado. Tem que batalhar, saber fazer concessão, escolher um ponto de partida, ver o que está em pauta, focar em cima dos itens com os quais as pessoas concordam. É parceria, é união civil, é casamento, é adoção? Os assuntos ficam todos muito enrolados. Tem que aprovar o mínimo primeiro e depois seguir com esse mínimo no bolso do colete. No caso desse projeto, creio que tenha faltado condução. O próprio movimento não se entende, às vezes.

Como você consegue aprovar tantas leis sendo minoria?
M - Eu sou um cara muito pragmático, uso muito a imprensa. Então, antes de uma lei ir para o plenário, eu crio uma situação na imprensa onde quem votar contra já vai ficar rotulado como discriminador, homofóbico, etc. Uso muito a imprensa, é uma das minhas especialidades. Aliás, eu sou muito criticado por isso, dizem que eu gosto de aparecer. Mas eu não tenho vergonha do que eu faço. Tem que ser assim, as coisas existem quando estão na tela. Uma outra maneira de vencer as resistências é chamar autoridades para audiências públicas e incorporar as sugestões delas para os projetos. Eles sempre criticam algum ponto e eu peço sugestões. Aceito todas, desde que o projeto não saia descaracterizado, claro. Uma terceira tática são as parcerias. Por exemplo, eu e Sérgio Cabral, apesar das convicções partidárias opostas, estabelecemos uma relação de respeito dentro da diversidade. Na segunda lei que eu fiz (nº3786/02), que garante direitos previdenciários aos funcionários públicos estaduais que são parceiros civis do mesmo sexo, dei a co-autoria para ele. Cabral pesquisou o projeto e viu que seria bem aceito. Era um projeto difícil. A Rosinha vetou, mas eu consegui derrubar o veto dela. Eram 70 deputados na Assembléia e precisávamos de um mínimo de 36 votos contra o veto. Se não tivesse dado a co-autoria pra o Cabral, estaria até hoje lamentando que o parlamento é muito conservador. O que quero é aprovar instrumentos bons, que defendam a vida e a dignidade das pessoas. Isso é habilidade parlamentar. Não cheguei sabendo tudo, a experiência é fruto de muitos mandatos. Está faltando isso em Brasília.

Tem pretensões de conquistar uma vaga na Câmara de Deputados? Você mede a aceitação dos gays fora do Rio?
M - Sei que sou conhecido, embora a minha atuação esteja restrita ao Rio. Participo de alguns encontros nacionais, o pessoal da Bahia e de São Paulo me conhece, dou entrevistas para revistas de outros estados. Mas não sei se pleitearia um cargo na Câmara. Talvez tenha uma pretensão em nível de prefeitura do Rio, que é uma coisa executiva. Nunca estive do lado do Executivo, acho que um defensor aberto dos gays numa cidade que é uma cidade gay, porque é uma cidade muito alegre, uma cidade que eu considero libertária, que está mostrando isso com as passeatas, seria uma possibilidade. Chegar à Prefeitura é um sonho que acalento e acho que eu podia dar uma contribuição positiva para a cidade. O ex-prefeitos de Paris e Berlim eram gays, eu não sou, mas é quase como se fosse. O pessoal brinca que antes eu era o "s" do GLS, mas já prestei tantos serviços à causa que ganhei carteirinha de membro efetivo.

18 de abr. de 2008

Crise de identidade


A mãe da Nina, amiga e colega de sala do Antônio, ambos com quatro anos, me contou a seguinte estória.



A professora disse:

- Francisco, você é um ser humano.

Francisco, contrariado, respondeu:

- Não, tia, eu sou Francisco.

Alguns segundos de silêncio e a professora perguntou se alguém gostaria de explicar.

Achou que, da boca de um amiguinho, a explicação sairia mais plausível.

Antônio levantou a mãozinha:

- Fran, todos nós somos seres humanos.

Ah, agora sim.

A aula pode continuar.



Foto: O menino maluquinho, tirada por Antônio

Quem rouba tu é quem paga tu

415, Usina-Leblon, entra na Nossa Senhora de Copacabana. Dois meninos, pés descalços, feridas abertas nas canelas raquíticas, shorts muito maiores que os corpos que tentam cobrir, dentes escuros demais para a pouca idade, pressionam a porta de trás. “Tamu fedendo cadi que viemo do lixão de Caxias”, avisa o menor deles. Um vendedor de vassouras, que brinca de equilibrista com seu fardo de madeira piaçaba, gargalha. Sentam sem cerimônia no último banco do veículo, mudos, narinas abertas aspirando o ar da pequena multidão perfumada. Na altura da Arcoverde, o motorista freia bruscamente. Escorrega pela porta da frente, pressiona a de trás, corre em direção aos meninos. “Podem descer agora, moleques, antes que eu enfie a porrada em vocês”. O equilibrista de piaçabas reage: “Deixa os menor, piloto, eles num vão roubar ninguém. Gente do lixão num rouba carteira, rouba comida”. Sem voltar os olhos para aquele que o repreendia, agarrou os dois pelo braço e os lançou porta afora, de uma tacada só. Da calçada, em prantos, feridas novas na canela, o maior esbravejou com toda a força que podia, para Copacabana toda ouvir: “Ô seu motorista, nós num quer roubar. Quem rouba tu é quem paga tu”.

Acontecimentos reais.1

Acordou e precisou lavar a roupa antes de sair de casa. Havia faltado água sete dias seguidos e precisava aproveitar agora que a caixa estava cheia. Foi cozinhar a batata doce para completar a quentinha e acabou se queimando. Ouviu falar que pasta de dente piorava a situação, que gelo aliviava provisoriamente, aumentando logo em seguida a ardência e que a força da mente, contraditoriamente, só era válida para pessoas muito espiritualizadas.
Ligou a rádio MEC para fortalecer o espírito, ou a mente. Não funcionou. Saiu de casa atrasada, levaria uma bronca do patrão, mesmo sem ter cartão de ponto. Na primeira rua que foi atravessar, na condição de pedestre, revoltou-se com um playboy que avançou o sinal. Tentou gritar filho da puta mas ficou muda. A boca abria e fechava, o dente encostava no lábio inferior em i, a língua estalava no céu da boca em lh, a língua empurrava o palato enquanto a boca abria em a, os lábios se encontravam em u, e novamente a língua empurrava o palato enquanto a boca abria em a. Mas nenhum som saía, estava realmente muda.
Continuou andando, quase foi atingida por estilhaços de obra que um operário jogava do caminhão para a caçamba na calçada. O operário pediu desculpas, a culpa não era dele, mas dela que passava pelo lugar errado. Como não tinha conseguido xingar o motorista infrator, tentou xingar o pedreiro. Será que ainda estaria muda? Ao invés do filho da puta o que saiu foi um rock, com voz, guitarra, baixo e bateria. De muda passara a multi-instrumental. Demorou a descobrir como fazia para controlar o volume. Não podia chegar na frente do chefe tocando Gimme Shelter, dos Stones, denunciando assim toda a sua antigüidade.
Como faria para se comunicar se de sua boca só saía música? Sim, escreveria um bilhete.
Entrou no escritório, o chefe enrugou a testa. Pegou uma folha de papel e escreveu estou com dor de garganta, mas as letras se misturaram, se redesenharam e o chefe leu filho da puta. Foi mandada embora. De volta à rua, aumentou o volume e se sentiu bem, tocando Diz que fui por aí., de Zé Kéti e H. Rocha.

Impressões de viagem São João-Bonsucesso

18 de abril

Colado na traseira de uma Kombi: "Que Deus lhe dê em triplo tudo aquilo que me desejar"; será algum tipo de leilão da Graça Divina (por causa do multiplicativo)?

Profissão de risco

Ok, alguns são péssimos, mas outros são bem divertidos. Os melhores são aqueles onde o repórter tenta ser "participativo" e quer andar de skate, testar o carro, segurar o gato (esse é fantástico - 20 pontos pro felino)
Alguém aqui já se deu mal também?



Treze

Os Caroços não param de aumentar:

Claudia Lamego
Olivia Bandeira
Luciana Gondim
Monique Cardoso
Andressa Camargo
Lucas Bandeira
Gustavo Monteiro
Gardenia Vargas
Andrea Vazquez
Gisele Maia
Marcelo Valle
Fernando Miragaya
Pedro Paulo Malta

17 de abr. de 2008

Adriana, de trás para frente














Num post antigo (já temos isso!!), a Nique escreveu sobre a Fernanda Takai, o que gerou inúmeros comentários musicais aqui no blog. Eu citei, como exemplo de cantoras da nova geração que gostava, a Roberta Sá. Dias depois, eu me peguei pensando: e a Adriana Calcanhoto, por que não falei dela? (embora ela não seja da nova, mas, para mim, da - por falta de outro nome -, intermediária geração, assim como Marisa Monte)

A minha sobrinha Carminha, a loira de personalidade mais forte do Brasil, está numa fase sapatilha rosa total. Então, lembrei de apresentar a ela a “música da bailarina”, através do disco da Partimpim. A ocasião era especial: iríamos assistir juntos, eu, ela e o titio Pepê, ao bandão da Escola Portátil de Música, na Uni-Rio (que acontece todos os sábados, ao meio-dia, e é um dos melhores programas musicais do Rio, seguido de um almoço na Urca com os professores).

No carro, ela folheava o encarte e pedia: “a música da balalina de novo”. Pois, falo do disco para admitir: só fui conhecer melhor e apreciar a Calcanhoto depois que ela se travestiu de Partimpim. O disco, feito para crianças, encantou adultos e, como o “Brasileirinho de Bethânia – que nasceu para ser só um projeto sem muitas pretensões comerciais – estourou e virou show e até DVD.

Antes, Adriana Calcanhoto não passava de uma voz bonita, que, se não me engano, ouvia em novelas e rádios com hits pops como “Mentiras” (“Nada ficou no lugar/eu quero quebrar essas xícaras/eu vou enganar o diabo/eu quero acordar sua família/eu vou escrever no seu muro/e violentar o seu gosto/eu quero roubar no seu jogo/eu já arranhei os seus discos/Que é pra ver se você volta...”).

Mas, as coincidências da vida... Justamente, quando eu curtia o CD da Partimpim, uma jornalista do Globo fez um bazar de seus discos no jornal (para pagar dívidas, achei) e vendeu tudo por R$ 10 cada. Eu arrematei três da cantora, dois do Caetano, não me lembro mais quais (a biografia da Nara ela também vendeu por R$ 10, mas alguém chegou antes de mim). E assim eu passei a ouvir mais Calcanhoto, a conhecer sua aproximação com a poesia, a admirar suas referências e cores, as influências, de Caymmi a Waly Salomão, passando por Chico, Caetano e pelo cinema de Joaquim Pedro de Andrade ao pop de Eduardo Dussek.

Voltando à janela de comentários sobre o texto da Nique, dias depois fiquei pensando que eu deveria ter citado a Calcanhoto como uma de minhas preferências, aproveitando para fazer a pergunta que o Segundo Caderno, do Globo, me respondeu hoje em sua capa: por onde anda a autora de “Cariocas”? Estava gravando um disco, “Maré”, que está sendo lançado agora e é, segundo a folha do Dr. Roberto, a segunda parte de uma trilogia, iniciada em “Maritmo”. Bem, vem mais Adriana por aí. Estou até repensando aquela minha opinião de não comprar mais CDs...

O Rio de Janeiro sob olhos canadenses - sem entrada e sem juros

- I always find it funny when something that I thought was strange about Brazil shows up in the news, five years later (i.e. calling  yourself Catholic when you disagree with the Pope about 90% of official church doctrine).

A frase acima fazia referencia a esta noticia. Nao precisa ser canadense pra nao entender essa compulsao parcelatoria, ne? 

Perguntado sobre mais curiosidades brasileiras, eis as questoes que ainda intrigam o nosso visitante:

- "Screaming at the top of your lungs on the sidewalk: just annoying or an effective marketing strategy?"

- "All those cheap Hershey chocolate bars: where the hell do they get them?! (and btw, are those real Gillette razor blades?!"

Gastando sola, economizando reais






Ser uma consumidora consciente dá trabalho. Hoje, fui à dermatologista para começar a cuidar, com mais disciplina, da minha pele, principalmente a do rosto. Sabe como é, já passei dos trinta, embora a aparência ainda não me denuncie (é o que dizem por aí, é o que dizem). Bem, a médica foi honesta, passando uma lista de cinco produtos e outra, com cinco opções de farmácia. “E não esquece de ligar para as Pacheco, Tamoios e Max, tá?”



Eu, que sempre compro o que está mais perto e ao alcance do meu cartão de crédito, resolvi seguir a dica. Ao chegar em Icaraí, comecei a peregrinação. O espanto veio já na segunda visita. Não vou fazer contas de percentagem (já larguei a faculdade de Economia e meu compromisso com números se encerrou na última vez em que tentei passar em Cálculo II, lá pelo longínquo 1997), mas mostrar exemplos da enorme diferença entre os preços. O Cleanance gel, com o qual lavarei minha face todas as noites e manhãs, custava R$ 68,60 na primeira drogaria que entrei, a Hiper Farma. Na Pacheco, o mesmo produto saía a R$ 81,99!!!!!! Outros dois produtos tinham uma variação de R$ 2, para mais, na Pacheco, e apenas dois custavam R$ 1 mais barato, na mesma farmácia. Conclusão: fujam da Pacheco enquanto é tempo!



Na terceira farmácia, era quase tudo mais barato. Mas o único produto disponível na loja era justamente mais caro que nas duas primeiras. Ou seja, a Descontão só é barata nos produtos que estão na tela do computador. Deve ser o preço “recomendado” pelo laboratório, sempre aumentado na hora de repassar o medicamento ao consumidor. A sensação é que quando os remédios realmente chegam à prateleira, o “descontão” (o trocadilho é inevitável) desaparece.



Na Tamoio, apenas um item era mais barato que nas três anteriores, e bem mais barato: o shampoo neutro Kerium da La Roche-Posay (adoro essa marca, pelo menos ele é mais barato que o Saliker, que uso há anos...). Enquanto nas outras, o preço variava entre R$ 34,90 a R$ 44,73 (na Descontão), na Tamoio saía a R$ 27,88.



Chegando em casa, após a exaustiva pesquisa de preços in loco, comecei a ligar para as farmácias indicadas pela médica. Uma deu ocupado durante a meia hora que tentei. Desisti. Outras três ou não tinham quase nada ou era tudo mais caro que nas anteriores. Na última, que pensava ser a mais cara de Icaraí, encontrei os quatro produtos mais baratos, inclusive o shampoo. Mas esse não tinha. Liguei para a Tamoio, encomendei o Kerium e fui até a FarmaÚtil garantir o resto. Era tudo mais barato, mas ela não tinha o que todas as outras me ofereceram: parcelar as compras sem juros no cartão de crédito. Entreguei os pontos. No fim do mês, recorro à poupança para pagar a conta. A esperança é, ao menos, ter uma pele mais viçosa.

Kiriku, Macunaíma, folclore e arte


Outro dia, assisti a um desenho animado mais do que diferente, Kiriku e a feiticeira, de Michel Ocelot. O filme começa com uma mulher, africana, grávida. Dentro do ventre materno, o bebê fala: "Mamãe, eu quero nascer." A mãe responde que, se ele já fala dentro da barriga dela, pode nascer sozinho. O menino engatinha para fora do corpo da mãe e corta o próprio cordão umbilical. "Mamãe, você tem que me lavar." Se ele nasceu sozinho, também pode se lavar sozinhom, é o que a mãe responde. Ela recomenda apenas que economize a água, porque, desde que a feiticeira Karaba apareceu na aldeia, o riacho parou de correr e todos os homens que vão combatê-la são comidos, inclusive o pai e o tio de Kiriku. E Kiriku, apesar do preconceito que sofre por ser menor que todos, vai atrás de Karaba para acabar com o sofrimento do seu povo.
A animação, com desenho algo naïf, é infantil mas não infantilizada (as cores são fortes - "tropicais?" - e as mulheres andam com seios à mostra, o que levou o filme a receber indicação "adulto" nos EUA). Uma análise do filme pode ser encontrada aqui.
A história é baseada em lendas da África Ocidental, e o interessante é notar como o tom se parece com as narrativas indígenas que inspiraram Macunaíma, de Mário de Andrade. Folheando hoje um livro do Sérgio Buarque de Holanda, O espírito e a letra, encontrei "O mito de Macunaíma". O antropólogo, historiador, crítico, etc., etc. (não é à toa que o filho dele é músico, escritor, dramaturgo, etc.) traduziu três narrativas do mito do deus Macunaíma, encontradas nos livros de Koch-Grünberg (de onde Mário de Andrade tirou a matriz de seu romance) e de Walter Roth. Na primeira, Macunaíma e Piá, gêmeos filhos do Sol, ainda no ventre da mãe, dizem: "Saiamos a visitar nosso pai. Mostraremos o caminho..." No meio do caminho para encontrar o pai de Piá e Macunaíma, a mãe acaba caindo e se machucando. Enfurecidos, os gêmeos se recusam a indicar a direção novamente. A mãe é morta por um jaguar, mas as crianças sobrevivem e crescem rapidamente. Dentro de um mês já eram adultos.
Outra semelhança entre os dois mitos está nos "suporpoderes" de Kiriku (que, além de já nascer espertérrimo, corre mais rápido que qualquer um) e do "deus" Macunaíma.
Queria ter mais tempo - e conhecimento - para tentar entender o que, afinal, significa esse mito do filho conversar com a mãe antes de nascer. Seria uma referência à óbvia e profunda ligação materna com os filhos? Ou àquilo que falta ao homem e atrapalha sua sobrevivência, ao fato de demorar mais que as outras espécies para ter autonomia?
Mas, além disso, Kiriku e Macunaíma são duas obras muito divertidas, e que nem por isso são simples. Tendo se inspirado em tradições semelhantes, têm públicos muitos distintos.
Kiriku é daquele tipo de animação que, em vez que passar valores às crianças, incentiva a imaginação. E, quem sabe, após conhecer algo diferente de Shreks e Mulans, ela não se desenvolve com mais gosto pelos livros, por culturas diferentes da sua (e da americana). Para terminar, a música do filme (traduzida; em francês é mais bonita):
Kiriku não é grande mas é valente
Kiriku é pequeno mas é o meu amigo
Kiriku é pequeno mas é o meu amigo
Kiriku o valente, é melhor que nós
Kiriku não é grande mas é a nossa criança
Kiriku é pequeno mas tem bom coração
Kiriku é pequeno mas tem bom coração
Kiriku é pequeno mas é o nosso amigo
Kiriku não é grande mas é a nossa criança.

(Imagens: cartaz de Kiriku e a feiticeira e Grande Otelo como Macunaíma.)