Onze da noite e ela ali, depois do turno de oito horas oficiais e duas extras. Úlcera dormindo tranqüila do lado esquerdo do estômago, biscoitos amanteigados, nona xícara de café do dia. Digita. Digita. Digita. Lá pela décima oitava página do relatório, sentiu a ponta dos dedos pesarem. Levantou, as costas doíam. Fez e refez os exercícios para a tendinite que o fisioterapeuta lhe ensinara. Pulso pra cima, pulso pra baixo. Pulso pra baixo, pulso pra cima. Digita. Digita. Digita. Sentiu os dedos ainda mais pesados, e quando arriscou uma tecla, as letras afundaram todas de uma vez. Quis esconder as mãos gigantescas atrás das costas, mas os dedos avançaram pelas pernas, desceram pelas coxas e tocaram o chão. Ainda assim, passou desapercebida entre os colegas hipnotizados pela tela do PC. Boa noite. Boa noite. Boa noite. Decidiu voltar caminhando para casa, uma bolsa de água quente certamente amenizaria o inchaço. Ou talvez devesse ir ao médico no final da semana, faltavam ainda muitas páginas do relatório para concluir. Atravessou a rua o mais rápido que pode, mas lhe faltaram as forças para carregar o mindinho. O dedo foi atropelado por um motoqueiro, que o confundiu com uma lombada. Se um cara manda no Brasil com nove dedos, pensou, eu posso muito bem bater um relatório sem um mindinho. Faltavam apenas duas ruas para chegar ao apartamento, onde ninguém lhe esperava, mas mal conseguia se locomover. Um vira-lata ladrou assustado com o polegar que destruía o asfalto por onde avançava. Logo vieram os outros cães que se fartaram com a carne exposta da palma das mãos. Caiu na esquina, entre latões de lixo e muros grafitados. Acordou rodeada por populares, que com facões e tesouras arrancavam o que faltava da mão, que crescera durante a madrugada e já ocupava todo o bairro. Dez mil novas barraquinhas de churrasco foram armadas em toda a cidade. Não sentia dor, apenas agonia por não ter acesso ao PC. Pediu uma caneta e um bloco de papel a um senhor que cortara a terceira falange do seu indicador. Arriscou um E, logo um P, e em menos de duas horas já aprendera a escrever o alfabeto todo com o pé direito. Trigésima terceira página do relatório, o dedão do pé começou a inchar. Escreve. Escreve. Escreve. O asfalto da rua logo cedeu, caíram os populares, as barraquinhas de churrasco, as casas, os prédios e as lápides.
Foto: Marcelo Valle
3 comentários:
Bela crônica urbana, Gondim.
E eu não me canso de pedir: escreva, Lu, escreva.
Admiro todos os seus muitos papéis e personas, mas não escondo a minha predileção pela contista/cronista fantástica.
Amo-te!
É uma metáfora da nossa profissão. Muito bom, Lu. Beijo.
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