11 de mai. de 2008

Transando lembranças (ou “Uma leitura de um disco”)


Ouvindo “Transa” (1972), eu começo a transar as lembranças de tempos não tão distantes, mas não menos saudodáveis (saudosos e saudáveis).

“You don’t know me”...

“Nasci lá na Bahia”...

“Laia-ladaia-sabadana-Ave-Maria”...

E o baterista dá aquelas viradas jazzísticas, o contrabaixo pulsa serpenteando as notas, o violãozinho solando bem blues, muito blues. E Caetano canchorando (cantando e chorando) algum lamento que poderia ser africano, mississipiano, mas é baiano, é nordestino, é blues, é muito blues, é universal, e é...

“Norte Centro Sul inteiro, onde reinou o baião”.

É extremamente desprovido de fronteiras, de amarras, de bolas de ferro acorrentadas a canelas corroídas. Música/arte essencialmente internacionalista (porque é assim que deve ser), a trabalhar com referências diversas, sem a patrulha das pseudo-esquerdas que sempre chiam quando a mistura não lhes parece enquadrada em seus esquemas de pureza ideológica/artística.

Nove em cada dez estrelas de cinema o faziam chorar... Mas ele estava vivo, muito vivo, ao som do reggae, em Portobello Road, tudo em volta de seu estômago, seu estômago...

Sim, ele sabia que um dia estaria morto, mas estava vivo, muito vivo.

E naquele Transa, naquela transa, a tal MPB (rótulo que mais segrega do que aglutina) parece que estava mais viva do que agora (se levarmos em conta o que enquadram no rótulo... pois, à margem dele, há vida, muita vida).

Caetano estava mais vivo. Ou não sei se me agradou mais porque se abriu pra referências de fora, enriqueceu o som. Afinal, fez a tal “antropofagia” de que falava Oswald de Andrade.

E aquela banda também era fantástica. O que o levou a declarar (segundo a citação reproduzida na wikipedia sobre o disco):

"Chamei os amigos para gravar em Londres. Os arranjos são de Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa. Não saíram na ficha técnica e eu tive a maior briga com meu amigo que fez a capa. Como é que bota essa bobagem de dobra e desdobra, parece que vai fazer um abajur com a capa, e não bota a ficha técnica? Era importantíssimo. Era um trabalho orgânico, espontâneo, e meu primeiro disco de grupo, gravado quase como um show ao vivo".

Detesto fórmulas para analisar fenômenos sociais. O termo “ciências humanas” não pode (não deve) encerrar um entendimento de que haja alguma objetividade matemática, algum método que dará conta de prever movimentos, descobrir leis gerais... Chega de determinismos rasteiros.

[O esforço pode até ser por aí: tentar a objetividade (como deve se tentar num bom jornalismo... embora os lados a serem ouvidos sejam, quase sempre, muito mais do que apenas dois), mas nunca perder de vista que sua realização plena não passa de um mito.].

Mas é irresistível montar a fórmula que encerra a lógica:

repressão + artistas de talento = obras inspiradíssimas.

Bom... Pelos menos, eu sempre ouvi esse comentário: “Nos tempos de ditadura, esses caras eram mais inspirados”...

Será que os artistas da MPB foram mais criativos justamente por que estavam sob a sombra da ditadura?

Letras com mensagens cifradas, exílios, saudades da terra...

Creio que contextos diferentes engendrem obras de arte diferentes, unidas por certas pitadas de um “estilo pessoal” (embora “pessoal” seja eminentemente “social”). A criatividade não cessa.

“Trago no peito a estrela do Norte”, “Triste Bahia, ó quão dessemelhante”...

Até que ponto isso mexeu com o imaginário dos artistas? Em que medida isso ajudou a fazer nascerem grandes metáforas entre os dentes cerrados pelo medo?

E aí pensamos em nomes como Brecht, Walter Benjamin, George Orwell... que, de certa forma, produziram sob sopros totalitários, sob o hálito podre do fascismo.

“It’s a long way, it’s a long way”…

**

Para quem quiser ouvir trechos:

http://www.caetanoveloso.com.br/sec_discogra_view.php?language=pt_BR&id=8

Ou se fartar com o disco.

Ou muito mais.

**

Vida longa ao compartilhamento.

Compartilhar-comunicar-tornar comum.

Acima de interesses econômicos, indústrias, leis de propriedade.

**

Então é isso aí.

Prazer chegar aqui ao virtual.

Oi pra geral.

Obrigado pelo convite e abraços...

virtuais.

**


12 comentários:

Monique Cardoso disse...

JH. Bem vindo, antes de qq coisa. Andei meio desconfiada de Caetano Veloso durante vários anos pois o conheci por suas canções-ícone e fui ouvindo até descobrir mais coisa. Ele ainda era um baú a ser remexido e revirado por mim quando lançou Cê. É um novo-outro Caetano. Mostrou que pode tentar voltar a estas transas de que vc fala. antes de soltarmos a verborragia das nossas pseudo-conclusões, vamos aguardar os próximos trabalhos pra saber se ele seguirá soltando as migalhas de pão pelo caminho para nós, pássaros famintos, voltarmos a segui-lo.

Cláudia Lamego disse...

João, o prazer é nosso. Seja bem-vindo a esta que é sua casa, desde sempre. Nosso Caroço honorário, com ficha de filiação amarelada e tudo. Estamos fazendo 10 anos, lembra? Pois é... nada melhor que um blog para comemorar.

Nique, pena que o Caetano cancelou seus shows-ensaio no Vivo Rio, né? Que coisa. Você tem alguma informação dos bastidores da decisão? Não seriam shows para "contruir" novas músicas? O que aconteceu?

Marcelo Moutinho disse...

Adoro esse disco, que comprei ainda moleque (um LP usadíssimo, cheio de ruídos). Há, no disco, uma amargura sufocada, bonita de doer... Acho curioso terem comparado com o trabalho mais recente do Caetano, que é muita forma para pouquíssimo conteúdo...

Gardênia Vargas disse...

Será que ele ouviu Xexéo (foi xexéo mesmo quem escreveu isso? Num lembro aonde li): E precisa de ensaio pra ensaiar - risos!

Bom, Não nos conhecemos ainda, né JH? Sou uma nova carocinha e você uns dois antigos membros que todo mundo fala bem. Coisa bôa! Prazer!

Sobre Caetano, bem, cresci ouvindo Caetano, uma mãe fanática cantanva aos meus ouvidos: "Ozóio da cobra verde, hoje foi que arreparei, se arreparasse a mais tempo não amava quem amei... It's a long way".

Depois passei uns anos descansando de Caetano e de toda "MPB". Voltei mais tarde, já na juventude, ams não gostava mais de que Caetano tinha se tornado. Sentia falta dos ventos, lenços e documentos.

De repente, Cê! Putz! O disco mais moderno dos últimos tempos. Caetano conseguiu superar Caetano. Isso é evolução. Aguardemos as novas para saber se continuarão ser como as velhas: modernas :o)

beijos

Cláudia Lamego disse...

Concordo com o Moutinho: muita badalação/modernidade para pouco conteúdo. Fico com as velhas canções do novo disco de Chico Buarque (não me joguem pedras, por favor!).

Garden, foi o Xexéo mesmo. Mas não é estranho? Se o show era um ensaio, para que ensaiar antes? Ahahahah

Olívia Bandeira de Melo disse...

Querido JH. Seja bem-vindo, saudades! Muito prazer receber suas palavras por aqui, sempre cheias de coisas pra pensar. Bem, o assunto é Caetano e, como todos já sabem, eu admiro demais a atitude dele, sempre em busca de novos sons, novos artistas, novos diálogos (ao contrário do Chico, né, Clau, que só tentou um "rap/embolada" do rato).
Mas gostaria de destacar outras coisas do seu post: a questão das fórmulas como inúteis para o entendimento dos fenômenos da vida, que são muito mais complexos, a importância do compartilhamento fora da grande indústria, a música que existe para além da MPB.
Abraços!

Olívia Bandeira de Melo disse...

O Caetano cancelou mesmo seus shows/ensaios no Vivo Rio? Hoje tem uma propaganda nos jornais do "obra em progresso" estreando no dia 14 de maio.
Eu tinha entendido que ele havia cancelado somente o do dia 07/05, que foi o dia do show do Rufus Wainwright, na Sala Cecília Meirelles. Este, em matéria no Globo, fez até uma brincadeirinha (ou seria sério? Não entendi) dizendo que seu show tinha mais gente porque o Caetano cancelara o dele.

Cláudia Lamego disse...

Lili, segundo o Xexéo, ele cancelou com essa justificativa: precisava ensaiar mais.

Sobre o Chico, acho muito bom ele sozinho, e convidando uma cantora ou outra de vez em quando, como a ótima Monica Salmaso.

E me faço a pergunta: se fosse vivo, Cartola estaria cantando rap ou fazendo participação especial em show de Marcelo D2?

Bem, de qualquer forma, eu amo Caetano. Estou até ouvindo o Transas, enquanto vejo a novela das oito.

Ah, e me lembro agora, não sei o motivo, mas quero registrar assim mesmo, do JH falando mal do João Gilberto... Lembra, João?

Lucas Bandeira disse...

"repressão + artistas de talento = obras inspiradíssimas" - o Brasil foi "inventado", como diria o tom Zé, pela Bossa Nova nos anos 50; eles abriram as possibilidades para que surgisse a moderna música popular brasileira (MMPB), que é justamente aquela de Caetano, Chico e Gil.
Muito diferente é você dizer que as músicas "cifradas", com o conteúdo político escondido, geram empatia em vc. A primeira grande fase criativa da MMPB foi nos anos 50. (Não estou falando da música popular, mas da moderna.)
Se bem que o Nietzsche dizia que só depois de muito sofrimento um povo pode gerar homens com vontade e força suficientes para ser grandes artistas...

Marcelo Moutinho disse...

O problema de "Cê" não é o flerte com o rock ou com o que quer que seja. É o quanto isso soa falso, o quanto pretende ser 'muderno', 'jovem'. E pensar que o próprio Caetano já escreveu que 'o homem velho é o rei dos animais'...

Lucas Bandeira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

agradecimentos aos comentários.

só não lembro de ter falado mal de um xará... talvez só do João Baptista Figueiredo (hehehe)

abs