O Gustavo escreveu sobre a Cidade da Música e a Monique lembrou, em comentário, a polêmica sobre a construção do Maracanã, no Rio. Então, aproveito a oportunidade para publicar um texto que tinha escrito para o jornal, mas que não foi publicado, numa série sobre os vereadores do país. Nele, está citada a briga sobre o Mário Filho, defendido na Câmara por ninguém menos que o nosso ilustre Ary Barroso, e atacada pelo controverso Carlos Lacerda. No livro do Sérgio Cabral, há mais detalhes sobre o debate. Aliás, o capítulo que trata de Ary como vereador é o mais saboroso da biografia escrita pelo primeiro-pai do estado sobre o compositor. Segue o texto:
Em tempos de mensaleiros, sanguessugas e fichas-sujas, é curioso lembrar que, no passado, os políticos ofendiam uns aos outros com xingamentos mais, digamos, ideológicos, do tipo “integralista”, “comunista” e até “sambista”. Esse último é o caso do compositor Ary Barroso, que, na legislatura de 1947/1951 na Câmara de Vereadores do Rio, foi “acusado” por um colega de não ter experiência como funcionário público, mas viver de tocar e cantar — como conta o jornalista Sérgio Cabral na biografia “No tempo de Ari Barroso”.
“Sr. Presidente, qual o defeito, qual a culpa, qual o erro, qual o castigo que mereço pelo simples fato de ser sambista? (...) Ser sambista, sr. Presidente, é muito difícil. Nunca pertenci ao quadro de funcionários (da prefeitura) e, se pertencesse e conseguisse chegar ao mais alto grau da carreira, nunca viria à tribuna do Legislativo com a pretensão de atirar contra um colega a pecha ‘infamante’ de sambista. Conclamo os sambistas a prestarem atenção nestas palavras: fui apontado, em tom pejorativo, nesta Casa, como sambista.”
Na época em que Ary ocupou uma das cadeiras da Câmara Municipal do Rio, a ideologia ainda definia posições e projetos. Polêmico, o compositor de “Aquarela do Brasil” foi um vereador atuante, se envolveu em várias discussões e dividiu a tribuna com nomes como Carlos Lacerda, seu colega de UDN. O estilo irreverente e irônico que trouxe de seus programas de rádio, entre eles o “Calouros em desfile”, e da narração de jogos de futebol foi uma de suas marcas na Casa.
Na briga pela aprovação da construção do Maracanã, Ary Barroso defendia que grande parte das despesas seria paga com a venda de cadeiras cativas. Lacerda era contra o estádio, preferia que ele fosse construído num terreno em Jacarepaguá. Tito Lívio, outro udenista, defendia que a prioridade do Rio era a saúde pública. Numa resposta ao colega Tito, Ary usou do deboche:
“Vossa Excelência, que combate com tanta veemência a aquisição de ‘cadeiras cativas’ nos estádios de futebol e que defende com tanto ardor os hospitais, deveria propor a compra de ‘leitos cativos’ para os doentes, já que eles se acham tão necessitados de morar dentro dos hospitais” (“Risos”, registrou a taquigrafia).
Ainda na polêmica sobre o estádio, Lacerda, um dos grandes oradores da casa, respondeu à altura. Uma de suas justificativas era de que o Brasil não tinha cimento suficiente para a construção.
“O Brasil vai importar cimento da Inglaterra para que o nosso colega, o sr. vereador Ary Bar-roso, possa irradiar jogos de futebol”, acusou o futuro go-vernador da Guanabara.
Na Câmara, Ary defendeu os interesses de seu bairro, apresentando projetos para melhorar a ladeira do Leme, onde morava, e os dos compositores brasileiros. Democrata, discursou contra a cassação do mandato dos vereadores do Partido Comunista. Conservador, reclamou da autorização para que banhistas circulassem nos bondes da Light:
“O Rio de Janeiro está se transformando numa cidade de homens seminus, uma vez que os banhistas se intrometem nas ruas distantes da praia, em trajes, positivamente, atentatórios à moral. (...) Assistimos ao desfile crítico e inédito de bondes, em plena Capital da República, carregados de banhistas em trajes menores e atitudes imorais, num desrespeito integral à família carioca, em gestos e esgares que depõem sensivelmente contra os nossos foros de civilização”.
Ao mesmo tempo, ao criticar um projeto que isentava o Clube Militar de impostos, Ary usou argumentos nada conservadores para defender que o teatro é que merecia tal benefício. Num aparte no plenário, defendeu o Teatro Recreio, acusado de imoralidade:
“V. Excia. acha que exibir ao público mulher de corpo bonito é deseducar o povo? V. Excia. desejaria talvez que, pela platéia do Teatro Recreio, desfilassem aleijões e monstruosidades físicas? (...) A pornografia bem disfarçada deixa de ser pornografia. (...) A malícia transforma-se em pornografia desde que o espectador seja pornográfico”.
Em tempos de gastos escandalosos nas câmaras e no Congresso Nacional, Ary Barroso, que já tinha o seu carro importado, foi contra um movimento para que a Câmara importasse automóveis para servir aos vereadores.
“Não vejo, sr. presidente, que, pelo simples fato de me transformar em representante do povo, valha-me dessa prerrogativa para superar o próprio povo, que está enfileirado, esperando a vez de comprar o seu carro. Seria preferível, sr. presidente, abandonar tais questiúnculas de privilégio, de prioridades e defendermos, exclusivamente, os reais interesses do povo.”
3 comentários:
Bela matéria, Clau.
Gente!!! sensacional. Os trechos citados me lembram, agora, só por analogia, da carta de Clarice Lispectos pedindo ao presidente, à epoca Getúlio, para liberá-la do período de espra para se naturalizar brasileira, afinla, ela era russa.
Muito bom, Clau. Aliás, esses textos que não saíram nos jornais são preciosos.
Beijos!
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