É bem difícil examinar com proximidade o novo disco de Adriana Calcanhotto mais que ela própria fez em seu site. (Ainda falo disco, em vez de CD, que já está ultrapassado...)
Neste CD (que, embora tenha a novidade de uma formação quase de banda - com o grupo +2 -, ressoa todos os outros de Calcanhotto), ela conseguiu que uma leve imagem unisse todo o disco, talvez por isso o mais bem acabado. Essa ligação entre as músicas ela mesma sugere quando denomina o CD de "Maré". Se os outros discos possuem músicas mais fortes, como "Mentiras", "Esquadros", "Cariocas", "Vambora", "Metade" e "Cantada", neste fica evidente aquilo que é possivelmente o principal diferencial da artista (não apenas cantora ou compositora): a união inteligente entre a palavra poética e a música.
Sem querer entrar na falsa questão de se letra de música é ou não poesia, vemos em "Maré" diversas possibilidades do uso da palavra poética conjugada com música. Temos desde "Um dia desses", poema de Torquato Neto musicado por Kassin, até "Sargaço mar", possivelmente a música mais poética de Dorival Caymmi. Entendam o "poético" aqui por aquela definição mais comum: a palavra que problematiza seu próprio significado. A letra de "Sargaço mar" é desses momentos em que a palavra mostra que pode significar mil coisas além dos significados comuns: "Quando se for/ esse fim de som/ doida canção/ que não fui eu que fiz/ verde luz verde cor/ de arrebentação/ sargaço mar/ sargaço ar". A bela passagem do sonoro (fim de som) para o pictórico (arrebentação) tem um efeito multiplicador sobre a palavra "verde" - certamente um dos momentos mais bonitos (e talvez mais difíceis) do cancioneiro de Caymmi.
Cabe ainda dizer que a ligação entre este disco e os anteriores se faz não apenas pelos timbres - e principalmente pela batida do violão de Calcanhotto -, mas também pelo que parecem ser citações de músicas anteriores. "Maré", que abre o CD, inicia com uma bateria que lembra o início do disco "Adriana Partimpim"; o violão e a vocalização da introdução de "Mulher sem razão" lembram a música também de Dé Palmeira, Bebel Gilberto e Cazuza que ela havia gravado em "Maritmo", "Mais feliz".
"Maré" também recupera "Maritmo" no título, mas a referência ao mar assume uma ressonância muito maior, não só por estar mais presente no disco como pela expansão de significados. Em "Maritmo" o mar era identificado a um lugar (além do Caymmi de "Na beira do mar", o Rio de Janeiro da música "Maritmo"). Agora, aquilo que é líquido (o mar) assume outros sentidos, como a distância ("A uma hora dessas/ por onde passará seu pensamento/ Por dentro da minha saia/ ou pelo firmamento?") e o desejo ("Só meu sangue sabe tua seiva e senha/ e irriga as margens cegas/ (...) sendas de tuas grutas ignotas"), mas, como na música "Maré", no final a certeza é de que o mar de Calcanhotto "é só linguagem".
*
P.S.
Acho que isso foi o que mais me marcou da audição do disco, mas é bom destacar o "tango moderno" de Marina Lima e Antonio Cicero "Três", num clima parecido com "A outra", do Marcelo Camelo; e a recuperação da música "Mulher sem razão", da qual eu não me lembrava. Quando comecei a ouvir a gravação desta música em "Maré", a melodia de "Sem aviso", de Fred Martins e Francisco Bosco, que a Maria Rita gravou, vinha à minha mente junto com o primeiro verso ("Saia desta vida de migalhas") .
foto: Leonardo Aversa (copiada sem autorização do site de Adriana Calcanhotto)
10 de jun. de 2008
Maré - Adriana Calcanhotto
Assuntos:
* Lucas Bandeira,
música
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4 comentários:
Estou louca para ouvir o disco!
Beijos, Ju.
Adriana Calcanhoto de novo por aqui?
Deve ser bom mesmo esse album.
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Fiquei com vontade de ouvir o disco também. Aliás, ando "desatualizada", tanto de coisas novas como antigas.
Agora, sempre tive a impressão de que letra de música era poesia e vice-versa. Quando você fala em "união inteligente entre a palavra poética e a música" você está falando da letra da música, da melodia ou das duas coisas?
Da união entre a palavra poética, que não é a mesma coisa que poesia, e a música popular.
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