6 de jun. de 2008

Acontecimentos reais.2


Foto: Keryllyn de Souza

"Sejam sinceros: nunca lhes passou pela cabeça querer ver-se vivendo? Vocês só querem viver para si - e fazem muito bem- , sem pensar no que poderiam ser para os outros; não porque não lhes interesse a opinião alheia, que lhes interessa enormemente, mas porque vocês vivem na feliz ilusão de que os outros, de fora, os percebem da mesma forma como vocês se percebem."

(Pirandello Um, nenhum e cem mil)

Coisas estranhas acontecem na normalidade da casa. As formigas não gostam de açúcar, preferem se infiltrar na garrafa de café. Todas as manhãs, ela é obrigada a repetir o mesmo gesto. Abre a garrafa, assassina as formigas com a água da torneira e depois joga água fervendo para limpar os vestígios. Ela pensa que sociedade secreta das formigas é essa que resiste às suas investidas.

Freqüentemente, também, os objetos somem ou mudam de lugar. Ela deixa o livro na mesinha de cabeceira, antes de dormir, e ele amanhece no sofá da sala. Certa vez, procurou sua certidão de nascimento, guardada há 35 anos na caixinha de recordações que sua mãe lhe dera, e ela não estava mais lá. Precisou ir ao cartório para recuperar sua existência.


Seu marido teima em lhe dar explicações científicas ou, ao menos, plausíveis, para as coisas estranhas. Trouxe, certa vez, um recorte de jornal que falava de uma espécie de formigas - a Faraó ou Monomorium pharaonis - que procuravam lugares na casa onde pudessem se aquecer, como os aparelhos eletrônicos. Logo, concluía o marido, as formigas entravam na garrafa de café em busca do calor.


Sobre os livros, ele jurava que a mulher era sonâmbula e que lia nas madrugadas, no sofá, embora ela não se lembrasse de nada e o marcador continuasse na mesma página em que ela havia interrompido a leitura antes de dormir. A certidão, obviamente, foi comida por traças, as traças de livros da espécie Acrotelsa collaris (Fabricius), que gostam de papel com cola, como a certidão que havia sido desprendida de um livro de anotações de bebê.


Um dia, ela olhou no espelho, mas viu a imagem de outra mulher. Chamou o marido. “Quem você está vendo ali?” “Ora, você”, respondeu o homem. “Não, não sou eu. É outra mulher. Agora me explique essa coisa estranha”. Diante do espanto do marido, desafiou: “Então descreva, detalhadamente”. O marido expôs minuciosamente os traços, contou as rugas, filosofou sobre a textura da pele e os desenhos do cabelo.


Dessa vez, ele não conseguiu solucionar o mistério. O que suas palavras descreviam era a outra mulher.

4 comentários:

Gardênia Vargas disse...

Lindo, Lili!

Luciana Gondim disse...

Como eu adoro a Liliterária!

A digestora metanóica disse...

Inspirador.
Sim, também já amo essa Liliterária que pouco conheci.

Gugu disse...

Coisa mais linda, Lili.