22 de abr. de 2008

Aventuras paternas


Minha alma boêmia e rueira poderia achar essa cena inimaginável. Noite de domingo, eu e os dois herdeiros refestelados no chão do quarto assistindo televisão. Só falta mesmo minha futura esposa para dividir esse momento dominical familiar e preguiçoso. Tudo bem. Daqui a seis meses o quarteto estará fixo e completo para estes hiatos raros entre saideiras e pé na rua.
“Pai, vamos ver o DVD do 'George, o Rei da Floresta'?”. Os olhinhos claros e a voz fina interrompem aquele ócio momentâneo e amolecem ainda mais este progenitor já tão vulnerável às investidas melosas daquela menininha. Pronto, estou eu agora refestelado no chão e assistindo ao Brendan Fraser interpretar um Tarzan abobalhado. Rio das risadas da minha filha mais do que das piadas previsíveis do longa-metragem.
Meus olhos vacilam de sono quando sinto aquela pele infantil queimar a minha. “Essa menina está quente demais ou isso é coisa de pai preocupado em excesso?”. Resolvi não me deixar enganar pelas neuroses paternas. Olho para o lado, ela continua a rir do macaco falante que usa óculos, enquanto o irmão mais velho revela todo seu tédio com os olhos perdidos na tela do televisor.
“Tão bem disposta, não está com febre não”, digo isso tentando enganar a mim mesmo. Aquela espoleta em forma de gente brinca com disposição mesmo com 40 graus. Saco o termômetro cor-de-rosa, guardado na necessaire cor-de-rosa, dentro da bolsa cor-de-rosa. “Minha filha é quase uma legalmente loira”, penso eu, em meio a um suspiro de constatação.
O termômetro digital é impiedoso e objetivo. Minhas suspeitas se confirmam e a febre agora é oficial. No relógio, 15 minutos para as 11 da noite. O pai irresponsável que não tem antitérmico em casa nem o remédio de alergia da filha agora vai pagar pela sua displicência. Com muita sorte encontrarei uma farmácia aberta a esta hora pelas redondezas. Arrisco dois telefonemas na esperança forçada de que alguma estar aberta.
Visto a primeira coisa que aparece na minha frente e ganho as ruas já certo da derrota. Olho a primeira farmácia possível de avistar do meu prédio. Obviamente que se estivesse aberta, o letreiro nada discreto chamaria minha atenção. Penso como as drogarias nesse país são espalhafatosas. A ponto de os estabelecimentos mais parecerem lojas de fast-food, vendendo saúde como se fosse um hambúrguer de qualidade e gosto discutíveis.
Arrasto meus chinelos com rapidez até a esquina. Mais uma vez, letreiros escuros. Corro os olhos pelo quarteirão e o panorama é inusitado. Uma churrascaria, duas pizzarias, dois restaurantes, um boteco, um podrão e uma lanchonete abertos. Ou seja, posso comer que nem um porco, beber até cair, mas não conseguirei um Engov.
Bem, pelo menos posso comprar uma flor para minha noiva a qualquer hora do dia, pois constato que o quiosque das plantinhas também não fecha. Curioso. Em um bairro repleto de idosos e cheio de farmácias, não tem um raio de uma drograria 24 horas para eu comprar um simples paracetamol genérico! Tijucano resignado, me dirijo ao ponto de ônibus resmungando toda a sorte de impropérios que me vem à cabeça. Destino: Saes Peña, ou “Praça”, como a raça tijucana costuma generalizar o coração comercial do bairro.
“Pelo menos, qualquer ônibus passa por lá”. Estendo a mão para o primeiro que faz a curva na rua, mas me lembro que não posso embarcar. Só estou com o cartão de débito. Bem que os coletivos poderiam começar a aceitar esse raio de dinheiro de plástico. Mas é por causa desse raio desse cartão que tenho a mania de não andar com dinheiro, sob protestos da minha mãe, que vive dizendo que um dia o ladrão vai me encher de tapa por eu estar sem grana.
Por causa do ladrão, também lembro que não consigo sacar dinheiro. Quer dizer, nenhum cidadão carioca pode tirar dinheiro na rua depois das 22h. Em uma daquelas resoluções em que se tira o sofá da sala, você não é mais assaltado ou seqüestrado entre 22h e 6h da matina. Mas também está fadado a ficar a pé.
Penso em ir a pé até “a Praça”, mas a preguiça me faz voltar para casa. Certo de que vou ter de abrir o cofrinho para juntar os níqueis e pagar a passagem de ida e de volta. O recurso é freqüente. Tanto que o cofrinho não é de porquinho nem tem cadeado. As moedas fazem barulho no bolso conforme os meus passos se apressam. Subo no ônibus com uma sensação de alívio imediato. E curto. Um estrondo sob o assoalho do coletivo provoca um frio na espinha. O ônibus quebrou no meio do caminho.
Esperar outro ônibus da mesma linha depois das 23h na Tijuca é uma tarefa para pessoas pacientes, virtude que jamais me coube. Com o dinheiro contado para a volta, não há outra alternativa senão seguir arrastando meus chinelos. Ainda mais resignado e com o vocabulário de palavrões mais extenso, vislumbro finalmente meu destino. As luzes das farmácias contrastam com as lojas apagadas e os cinemas de outrora, agora dominados pelo comércio e pela religião.
Chego rapidamente a um dos ex-cinemas, onde agora funciona uma farmácia cujo plantão se dá com os funcionários sonolentos atrás de um vidro blindado e um cilindro de ferro para entregar as mercadorias. Com dois sujeitos ainda para serem atendidos, penso na mão-de-obra que é comprar nesse esquema.
Vou até a outra farmácia, essa sim, que fica aberta plenamente 24 horas. Entro, peço os remédios e vou ao caixa já esboçando um sorriso com o dever quase cumprido e antecipando o fim de minha missão paterna. Compro até uma bala para comemorar, já que essas drogarias vendem de tudo mesmo.
Pura ilusão momentânea. O cartão de débito não passa. A máquina impiedosa diz que não há linha disponível para conectar. Lembro logo do comercial da TV do famigerado cartão que expõe uma senhora ao desagravo comercial por preencher um cheque em uma loja de plantas. E estou eu lá há 10 minutos tentando passar o cartão, sem que o cenário fique preto-e-branco de repente.
“Jorge, tem alguém usando a linha?”, pergunta a caixa da farmácia pela terceira vez ao atrapalhado companheiro de trabalho. Minha cara de irritado ganha contornos ainda mais agressivos quando um táxi estaciona na porta do estabelecimento com o rádio na estratosfera ao som de “Créu”. Juro que nunca tinha ouvido a música inteira. Agora, sou forçado a constatar o quanto a canção é idiota.
Nada de linha, nada de cartão, logo se forma uma fila e a caixa passa a atender os seguintes enquanto o Jorge tenta resolver o imbróglio do cartão. Um playboy ansioso paga uma caixa de camisinhas. Em seguida, um companheiro com a bela camisa tricolor paga o mesmo produto. Não tenho como não pensar na minha noiva e no pouco tempo que nós acabaríamos com aquela caixa de preservativos. “Todo mundo vai foder, enquanto essa porra desse cartão fode com a minha paciência ao som do Créu”.
Finalmente, consigo pagar os remédios. Agora, a missão é voltar. Os ônibus por aqui ficam mais raros conforme o passar das horas. Mas eis que surge rapidamente um 415. Entre vans e Kombis paradas no ponto para suprirem a carência dos coletivos oficiais, estico o braço. O insensível ônibus passa direto. Antes mesmo que eu soltasse o xingamento, o veículo pára 200 metros adiante. “Valeu motorista”. E saio arrastando os chinelos de forma mais rápida, pois me nego a correr atrás de ônibus (ainda mais de chinelos).
Quase alcançando o coletivo, eis que desembarcam três adolescentes para quem a noite, pelo visto, ainda vai começar. A luz de freio do ônibus se apaga e o motorista começa a arrancar para eu perceber que ele não tinha parado para mim. Antes que ele se vá totalmente, abro a mão e desfiro um golpe perfeito sobre a lataria oca da parte de trás do veículo. O estrondo não só atrai os olhares do vendedor de balas, que cochilava sob a marquise, mas serve também para o motorista frear.
A irritação é tanta que enquanto ando em direção à porta do ônibus penso nos pedidos da minha amada para relaxar. Minha fisionomia e o vigor do tapa na carroceria, porém, já denunciavam meu grau de irritação. Entro no coletivo e me deparo com uma motorista com um semblante de espanto. Viro os olhos e encontro o trocador igualmente assustado e levantando rapidamente para pegar meu dinheiro. Todos os passageiros me encaram com silêncio.
Calado e com cara de poucos amigos, me jogo no banco do ônibus e penso que realmente devo estar assustador. Gordo, cara de sono, cabelos desgrenhados, uma camisa preta com um Garfield fazendo careta e com as mangas rasgadas, a imagem de um ser estranho tatuada no braço esquerdo, short azul todo ferrado e havaianas. “Saudade da minha noiva. Com certeza ela estaria aqui rindo disso tudo e me fazendo rir”.
Exausto moralmente e fisicamente, abro a porta de casa e a pequena febril abre os braços e o sorriso em minha direção. Não está mais quente como antes. Saco o termômetro cor-de-rosa novamente. Não confio no resultado e apelo para outro termômetro, sem grandes tecnologias e mais convencional. A febre baixou.
“Pai, vamos ver o George novamente?”. As palavras em meio às gargalhadas do irmão adolescente e os olhinhos pidões da caçula me fazem achar graça da saga notívaga a qual tinha acabado de me submeter. Me fazem lembrar de outras aventuras de madrugada por conta do primogênito. E me fez ter certeza que faria tudo novamente. Inclusive, ver mais uma vez o Brendan Fraser se espatifar contra uma árvore.

5 comentários:

l.c grazinoli disse...

Rapaz, entendo seu calvário, apesar de nao ter filhos, mas tenho um par de sobrinhos lindos.

Minha irma ja me fez sair muito da minha casa, pra comprar remédios pros dois.

Como bom tijucano, anote ai um telefone de uma farmácia 24 hs na esuina da uruguai que entrega a noite inteira. 2278-5000.

Que da proxima vez vc saia dde casa, que nem eu já sai na madrugada, pra comprar sorvete ou chocolate.

abcos

Luciana Gondim disse...

Que belo cronista...comprou os preservativos?

Cláudia Lamego disse...

Que crônica bonita, Miragaya! E super carioca, no que há de bom e ruim dessa cidade!

Oh, quando escrevi o post acima juro que ainda não tinha lido o daqui de baixo. Ah, L.C e Mira: nada contra os tijucanos não, tá? (risos)

Gugu disse...

Meu Deus, que crônica linda. Fiquei emocionado, amigo. Jamais passei por metade desses estresses numa noite só. Você é um pai de ouro. Abraço.

Olívia Bandeira de Melo disse...

Muito boa, Fernando. Mas quanto a Lu tá te pagando pra você falar dela o tempo todo?
Abraços!