22 de abr. de 2008

Entrevista: Carlos Minc


Carioca, casado, pai de dois filhos, apreciador de cinema e apaixonado pelo Rio. A descrição revelaria um cidadão comum, não fosse por uma peculiaridade: além dessas características, a pessoa em questão exerceu quase seis mandatos consecutivos como deputado estadual pelo PT, tem mais de 110 leis aprovadas, participou ativamente da resistência contra a ditadura militar, recebeu prêmio da Organização das Nações Unidas, em 1989, pela luta em defesa do meio ambiente. Atualmente, ocupa o posto de Secretário Estadual do Ambiente, no governo fluminense. Enquanto deputado, conduziu a atividade parlamentar focado em temas como segurança pública, saúde no trabalho e direitos das mulheres, dos negros e dos homossexuais. Aos 56 anos, Carlos Minc angaria fãs não só pela militância política, mas também pela simpatia. "Os gays são alegres, me animam. Vou a todas as paradas e boites, danço muito, abraço e me identifico com as pessoas. Temos uma relação afetiva forte". Em 2000, Minc deu mais um passo para entrar na História da América Latina ao criar a lei estadual nº3.406, que pune estabelecimentos pela discriminação de gays, lésbicas e travestis. Nesta entrevista, o secretário fala dos preconceitos na tribuna, afirma que o Rio tem se destacado nas políticas em defesa dos homossexuais – apesar de ser um dos campões em casos de violência – e critica a lentidão da aprovação, no Congresso, do projeto de união civil para pessoas do mesmo sexo. Minc cita a amizade com o guerrilheiro homossexual Herbert Daniel, fala da pretensão em ocupar a cadeira de prefeito do Rio de Janeiro e dá um recado: "Os gays precisam se mobilizar. Não adianta criarmos a leis se as pessoas não exigirem que elas sejam cumpridas".

Quando você começou a se engajar na luta pelos direitos dos homossexuais? Como está a conscientização dos seus colegas em relação aos direitos dos gays?
M - Eu participei do movimento estudantil na década de 1960, da resistência armada, estive exilado e adotei, desde os 18 ou 19 anos, uma linha libertária, que implicava em ter uma visão de que não haveria transformação social se houvesse opressão dos negros, das mulheres, dos gays, das minorias. Fiquei dez anos exilado, na Europa vivi muito de perto a discriminação em relação aos trabalhadores imigrantes, que eram vítimas dos neo-nazistas, vi albergues sendo queimados. As movimentações com caráter racista e homofóbico eram intensas. Isso acompanhou minha formação cultural e política. Na esquerda, tive um grande amigo, que era guerrilheiro e homossexual, o Herbert Daniel. Ele participou de guerrilhas contra a ditadura junto com Lamarca, era do PT e chegou a se candidatar. Escreveu muitas coisas, era um militante importante. Morreu de Aids, eu estive exilado com ele, era meu amigo, fazíamos parte do mesmo grupo, tínhamos vários amigos comuns. Desde os meus primeiros mandatos eu lutei por essa linha ecológica e libertária.


Como você lida com as resistências na sua atuação parlamentar?
M - Para responder essa pergunta, vou contar uma coisa engraçada que aconteceu e mostra como é a hipocrisia no Brasil. Em 1989, eu ainda estava no meu primeiro mandato, pelo Partido Verde, trabalhando no texto da constituição estadual. A pedido do Herbert Daniel, eu queria incluir, no artigo que fala que ninguém pode ser discriminado por raça, cor, sexo e religião, a questão da orientação sexual. Isso em 1989, imagina! Eu falava com os deputados do interior e eles me falavam: "Não me pede isso. As coisas de ecologia a gente até bota, mas essas coisas de viadagem não dá. Imagina o meu filho numa escola, um professor viado dando aula pra ele e numa dessa o meu filho vira viado também". Nós ouvíamos esse tipo de coisa. Era realmente um atraso cultural e político. Comecei a me dar conta de que o parlamento acaba condensando todos os preconceitos que existem na sociedade. Toda a corrupção aparece ali de forma grotesca e concentrada.


E hoje, está mais fácil legislar em defesa dos gays?
M - Não. Imagine: houve uma manifestação em 2006, quando derrotamos o famoso projeto do deputado Edno Fonseca, um pastor evangélico que queria que o Estado ajudasse os gays a se converterem em heterossexuais, com recursos públicos que seriam repassados a entidades específicas, incluindo a igreja dele. Isso significa que o pastor estava legislando em causa própria, pedindo do Estado recursos do contribuinte. Em nenhum momento ele explicou como essa conversão seria possível, quais seriam os métodos utilizados. Várias vezes eu o provoquei perguntando quais seriam os mecanismos. Quero destacar o seguinte: muitos deputados defendem as causas da livre expressão sexual e das causas gays, mas adotam a seguinte tática: nos seus informativos mais amplos não mencionam o assunto, depois fazem panfletos dirigidos diretamente aos homossexuais defendendo a causa. Tentam ficar dos dois lados: para o público mais conservador não dizem que são contra, mas omitem. E depois fazem um texto dirigido ao público gay criticando a homofobia. O fato é que tem muita gente que é de esquerda e é preconceituosa. Tem muito estudante que está na luta pelo passe livre nos ônibus, é engajado mas preconceituoso.


Você falou em botar a cara à tapa. Os gays estão mais corajosos?
M - Sem dúvida. Quando aprovamos a Lei da Camisinha (nº 2929/98), que determina que todos os quartos dos motéis cariocas tenham pelo menos três unidades de preservativos, com selo de garantia do Inmetro e a preço de custo, colocamos uma camisinha de 18 metros no obelisco da avenida Rio Branco, o símbolo fálico da cidade. Há sete anos atrás fizemos uma manifestação em um hotel de Niterói, que queria cobrar duas diárias de um casal gay que foi comemorar o namoro no local. O estabelecimento recebeu multa de R$ 22 mil e, para não piorar a imagem, o gerente resolveu dar duas noites gratuitas na suíte presidencial para o casal. Então eu acho que, como ninguém lê Diário Oficial, as pessoas só sabem que uma lei existe se você agita a bandeira delas, se leva a mídia, se torna a lei conhecida e constrange aqueles que insistem em discriminar e desconhecer as leis. Por isso é que no Brasil a maior parte das leis têm essa vocação inexorável para se converter em alimento de cupim na gaveta dos burocratas e dos poderosos de plantão. Fazemos campanhas do "Cumpra-se" justamente para tirar essas leis do papel.


As passeatas gays são um reflexo da mobilização da sociedade em relação aos direitos humanos?
M - Sim, acho que elas mexem com a cultura, com os valores. Fui em todas as do Rio, desde as primeiras, com 400 pessoas, até as mais recentes, com 800 mil a 1 milhão de participantes. Fui convidado por várias cidades mas, infelizmente, não tenho pernas para ir a todas. No interior, houve oito ou nove, mas eu fui em três. Cidades que nunca tiveram manifestações do gênero estrearam com grandes passeatas. Municípios conservadores estão aderindo. Grande parte das pessoas que vão às ruas não é gay, perceberam que é uma festa em prol da liberdade, pelo respeito, pela pluralidade. É uma festa e isso é ótimo, porque de caretice chega a vida, os partidos, o parlamento. É uma festa, mas com conteúdo político, celebra a pluralidade e vai contra o preconceito. Você combate a homofobia com discurso, com artigos, com leis, com ações como a do hotel em Niterói e com afeto. Combate também criando entidades de apoio como o Disque Defesa Homossexual (DDH), inaugurado em 1999, no Rio.


Quando se fala em luta contra o preconceito, como o Rio está em relação aos outros estados do Brasil?
M - Em relação aos outros estados, o Rio tem uma característica curiosa: por um lado apresenta números elevadíssimos de violência contra gays, lésbicas e travestis, registrados nas mais diversas delegacias e, mesmo assim, subavaliados. Muitas vezes uma pessoa é agredida e não registra, ou registra mas não caracteriza a homofobia como causa da agressão, o que acarreta em uma subnotificação. Ainda assim, o Rio só perde para Pernambuco em casos de homofobia. Mas, curiosamente, é um dos mais avançados em termos de legislação. Criamos aqui a primeira lei contra a discriminação, a primeira lei de reconhecimento de direitos previdenciários para gays, o primeiro DDH. Temos a segunda maior passeata gay do país. Se considerarmos o número de pessoas na passeata por habitante, o Rio está na frente de São Paulo. Uma cidade linda, do carnaval, da moda, da cultura, capital cultural, de música, da ecologia, chegou a ser campeã de violência, agora é vice-campeã. Talvez até por isso consigamos avançar com leis pioneiras. De forma contraditória, convivem no Rio um grau muito grande de violência e de resistência à violência.

Você disse que não basta criar as leis, é preciso mobilização e fiscalização do povo. Como as pessoas podem colaborar efetivamente?
M - O que faz a coisa melhorar é o conjunto da obra. Uma boa passeata do Orgulho Gay, por exemplo, ajuda a criar uma lei boa. Uma lei boa, como a do DDH, estimula as pessoas. Há uma interação entre um bom artigo, uma boa manifestação, uma boa lei, uma boa passeata. Vai-se criando cultura dentro da diversidade. Essas manifestações conseguem ter alcance nacional, servem de incentivo para outros estados. Por exemplo, quando aprovamos a primeira lei contra a discriminação, saiu matéria do Jornal Nacional. As passeatas todas são assunto de matérias nacionais. Essa reportagem do hotel de Niterói teve alcance nacional.


Como você está vendo a evolução das leis pelos direitos dos gays no Brasil? A união civil está longe de acontecer?
M - A Marta Suplicy entrou com esse projeto em 1995. Estamos em 2008, portanto faz quase 13 anos que o projeto está tramitando. É claro que é mais difícil aprovar uma lei de alcance nacional. Aqui a gente tem os artistas, tem a TV Globo, eu sou um cara descolado, faço alianças. Em nível nacional há representantes de áreas mais atrasadas, existe bastante conservadorismo. Mas acho que houve má condução do projeto. Houve um momento que um dos relatores do substitutivo foi o Roberto Jefferson, que acabou mostrando quem ele era e foi cassado. Tem que batalhar, saber fazer concessão, escolher um ponto de partida, ver o que está em pauta, focar em cima dos itens com os quais as pessoas concordam. É parceria, é união civil, é casamento, é adoção? Os assuntos ficam todos muito enrolados. Tem que aprovar o mínimo primeiro e depois seguir com esse mínimo no bolso do colete. No caso desse projeto, creio que tenha faltado condução. O próprio movimento não se entende, às vezes.

Como você consegue aprovar tantas leis sendo minoria?
M - Eu sou um cara muito pragmático, uso muito a imprensa. Então, antes de uma lei ir para o plenário, eu crio uma situação na imprensa onde quem votar contra já vai ficar rotulado como discriminador, homofóbico, etc. Uso muito a imprensa, é uma das minhas especialidades. Aliás, eu sou muito criticado por isso, dizem que eu gosto de aparecer. Mas eu não tenho vergonha do que eu faço. Tem que ser assim, as coisas existem quando estão na tela. Uma outra maneira de vencer as resistências é chamar autoridades para audiências públicas e incorporar as sugestões delas para os projetos. Eles sempre criticam algum ponto e eu peço sugestões. Aceito todas, desde que o projeto não saia descaracterizado, claro. Uma terceira tática são as parcerias. Por exemplo, eu e Sérgio Cabral, apesar das convicções partidárias opostas, estabelecemos uma relação de respeito dentro da diversidade. Na segunda lei que eu fiz (nº3786/02), que garante direitos previdenciários aos funcionários públicos estaduais que são parceiros civis do mesmo sexo, dei a co-autoria para ele. Cabral pesquisou o projeto e viu que seria bem aceito. Era um projeto difícil. A Rosinha vetou, mas eu consegui derrubar o veto dela. Eram 70 deputados na Assembléia e precisávamos de um mínimo de 36 votos contra o veto. Se não tivesse dado a co-autoria pra o Cabral, estaria até hoje lamentando que o parlamento é muito conservador. O que quero é aprovar instrumentos bons, que defendam a vida e a dignidade das pessoas. Isso é habilidade parlamentar. Não cheguei sabendo tudo, a experiência é fruto de muitos mandatos. Está faltando isso em Brasília.

Tem pretensões de conquistar uma vaga na Câmara de Deputados? Você mede a aceitação dos gays fora do Rio?
M - Sei que sou conhecido, embora a minha atuação esteja restrita ao Rio. Participo de alguns encontros nacionais, o pessoal da Bahia e de São Paulo me conhece, dou entrevistas para revistas de outros estados. Mas não sei se pleitearia um cargo na Câmara. Talvez tenha uma pretensão em nível de prefeitura do Rio, que é uma coisa executiva. Nunca estive do lado do Executivo, acho que um defensor aberto dos gays numa cidade que é uma cidade gay, porque é uma cidade muito alegre, uma cidade que eu considero libertária, que está mostrando isso com as passeatas, seria uma possibilidade. Chegar à Prefeitura é um sonho que acalento e acho que eu podia dar uma contribuição positiva para a cidade. O ex-prefeitos de Paris e Berlim eram gays, eu não sou, mas é quase como se fosse. O pessoal brinca que antes eu era o "s" do GLS, mas já prestei tantos serviços à causa que ganhei carteirinha de membro efetivo.

2 comentários:

Luciana Gondim disse...

"Não sou gay, mas sou como se fosse". Muito bom, amiGuuuu! De quando é a entrevista?

Gugu disse...

Lulu, eu fiz em 2005, para a G Magazine. Tive que atualizá-la para publicar aqui. Beijo.