23 de abr. de 2008

Vida de jornalista




27 de outubro de 2002. Toca o telefone na redação.

_ Estou ligando para avisar que vamos todos ficar sem casa.
_ Ahn?
_ Sim, minha filha. Se o Lula for eleito hoje, além de nos expulsar das nossas casas, ele vai trocar o Hino Nacional do Brasil pela Internacional Comunista.
_ É mesmo?
_ Você não sabia disso não?


Algum mês de 2005, durante a crise do mensalão. O telefone toca de novo. Uma leitora puxando conversa. Mais: queria escrever uma carta, e precisava entregar nas mãos de um jornalista qualquer. Ao me ouvir dizer apenas o frio endereço do jornal, fez o lamento:

“Mas eu quero entregar em mãos. Quero que o jornalista abra a carta e leia na minha frente, me dizendo o que achou. Antigamente, no JB, os jornalistas nos recebiam. Quem você acha que eu posso procurar quando chegar aí?”

22 de abril de 2008. Chego de férias e pego a correspondência. Entre os contracheques atrasados, faturas de plano de saúde e releases de assessorias de imprensa, uma carta escrita à mão (não é raro recebermos cartas, mas confesso que era mais freqüente quando trabalhava no Jornal de Bairros, onde a relação com o leitor é mais intensa ainda). O remetente mora na Tijuca e isso já pode ter algum significado (tenho uma amiga que sempre nos lembra que escrevemos para o “militar de bermudas tijucano”).

A carta foi escrita no dia 31 de março (data, por sinal, cara a alguns militares) e postada no dia 1 de abril. Ao rasgar o envelope, a primeira surpresa: a minha foto (ilustrando o post) na coluna "Por dentro do Globo", um espaço para os leitores conhecerem melhor os “bastidores” de nossa redação e das reportagens. Logo pensei: poxa, taí, se minha mãe não tivesse guardado e pendurado a coluna na geladeira aqui de casa, seria uma boa oportunidade agora de arquivar o recorte de jornal. Mas, em seguida, o espanto: assim como recortou e mandou para mim, ele pode ter guardado essa foto em algum arquivo secreto e morto de seu apartamento, e com que estranhas e perversas intenções!

Junto da folha de caderno com o escrito em letra de fôrma, outros dois recortes do jornal, de duas colunas do Elio Gaspari, estes sim, dignos de arquivo. À carta:

“Prezada jornalista
Cláudia Lamego.
Saudações.

Diante de sua ativa participação na difusão de fatos dos idos de 1968, vai aqui uma sugestão.”

Pausa. Ativa participação? Bem, fiz uma matéria, tinha programadas mais duas, fiquei doente, entrei de licença, logo depois de férias. Que feitiço terá usado esse leitor para me afastar de minhas atividades profissionais e parar com a “difusão de fatos” de 68 (sou do tempo em que não precisávamos escrever o ano completo)?

“Possivelmente por você ser jovem e não ter tomado conhecimento das entrelinhas da história ou, até mesmo por imposição dos patrões, notou-se na coluna “Por dentro do Globo” que ouve (sic) uma tendência a mostrar-se apenas uma face da moeda.
Se foi por determinação superior, o problema já conduz para a subserviência, falta de independência, por medo de perder o emprego. Não gostaria de acreditar nisso. Prefiro a falta de informação”.

Aqui vale um parêntese para falar da matéria citada. Fizemos duas páginas de um domingo de março sobre os jovens de 68 e os de 2008. Numa delas, as repórteres Soraya Aggege, de São Paulo, e Letícia Lins, correspondente em Pernambuco, tentaram mostrar uma série de diferenças de comportamento, após 40 anos do mitificado ano que culminou no Ato Institucional número 5. Na página que me cabia, promovi um encontro entre duas representantes dessas gerações: a cineasta Lúcia Murat, que foi militante, presa e torturada durante a ditadura; e a estudante Thaís Amaral, militante de ONG, engajada em projetos sociais da comunidade onde mora, o Morro do Preventório, em Niterói. As colunas do Elio mostravam que militantes da luta armada ganharam indenizações muito maiores, por exemplo, do que pessoas que foram atingidas por ações daqueles, sem nada ter a ver com a luta política deles.

“Aliás, seus patrões na pessoa do saudoso Dr. Roberto Marinho eram, como se diz na gíria, carne e unha com os militares. (...)”

Aqui, começam minhas dúvidas. Quem seriam meus patrões hoje? Não foram eles que, na falta de independência minha, me obrigaram a colocar militantes de 68 no jornal? Carta que segue.

“Para encurtar a conversa, nada melhor do que as colunas do companheiro de jornal Elio Gaspari a respeito.
Portanto, seria muito sadio se você se conscientisasse (sic) da verdade (...).
Se procedermos assim, evitaremos que alunos como a Thaís Amaral (citada na coluna) cresçam alienados pela má informação. Esta seria uma grande colaboração de vocês ao ensino no Brasil, onde se está contando a história da maneira que convém àqueles que se locupletando (sic) às custas do nosso suor. São as poupudas (sic) pensões pagas aos heróis do nada. Construtores de coisa alguma.”

Meu Deus! O que ele deve ter escrito sobre as pensões e indenizações ao Jaguar e ao Ziraldo? Mas, essa é uma outra questão, da qual me abstenho de opinar no presente post.

“Portanto, seja independente (se é que pode) para olhar-se com orgulho no espelho.
Abraços.”

Acabo de ler a carta e penso numa crônica do Nelson Rodrigues (ando a reler as confissões de meu cronista predileto, agora publicadas pela Agir) sobre o Dr. Brito, do Jornal do Brasil, e pesco de lá a frase: “O leitor, que é um simples, não pode imaginar a sombria complexidade de uma redação”.
P.S.: Domingo, se tudo correr bem, publico mais uma matéria da série sobre os 40 anos de 1968.

8 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom Clau!
Para o seu arquvivo de "vida de jornalista", carta que recebi de um leitor já trabalhando aqui na Auto Press:

"Prezado Sr. Fernando Miragaya

Por que em suas reportagens há sempre uma crítica velada – algumas vezes nem tão velada assim – ao sistema vigente? Há sempre adjetivos maldosos como "didática capitalista", "liberalismo perverso". O senhor por acaso não gosta do nosso sistema? O senhor não acha que a indústria automobilística não é um setor que depende de um sistema capitalista? Se o senhor não está contente, por que não vai cobrir a indústria automobilística de Cuba? Esta sim deve ser moderna com seus calhambeques dos anos 50 cheios de gatilhos para conseguirem rodar. Ou o senhor é a favor da volta de empresas estatais de automóveis como a russa Lada, com seus modelos com conceitos de automóveis antiquados e ultrapassados? Sua subversão serve a que interesses? O senhor acha que vai conseguir o que com esta mentalidade de esquerda ufanista e frustrada? Talvez devesse escrever para tablóides marrons do tipo Cadernos do Terceiro Mundo e deixar o jornalismo automotivo para quem realmente saiba o seu contexto e importância dentro do sistema.

Att

Rodrigo Dantas da Silva"

Miragaya disse...

Não sei porque entrou anônimo. Ainda não me familiarizei com esta internet opressora e neoliberal... rs

Deia Vazquez disse...

Excelente, Clau.
Que bom que esse leitores existem!

Anônimo disse...

Cláudia, muito bom o novo blog. Longa vida aos Caroços e aos posts inteligentes como este. Aliás, sua declaração sobre o PP está um fino.
Beijos,
Mario

Gardênia Vargas disse...

ótimo! que sigamos com tempo e dedicação para expormos nossas opiniões, assim como seu leitor atento.
;o)

Cláudia Lamego disse...

Mira, vou guardar no arquivo!

Mario, supimpa sua visita!

Meninas, vivam os leitores tijucanos!

Olívia Bandeira de Melo disse...

Clau, a carta foi publicada no jornal? Deveria ter sido. O que acho mais interessante é a irônica dúvida do leitor: você é alienada ou subserviente? São as duas únicas possibilidades. Mas a frase do Nelson Rodrigues vem pra nos salvar.
Beijos!

Cláudia Lamego disse...

Não, Lili. Ela veio endereçada a mim, e não à seção de cartas. E a guardarei como relíquia! :)