18 de abr. de 2008

Acontecimentos reais.1

Acordou e precisou lavar a roupa antes de sair de casa. Havia faltado água sete dias seguidos e precisava aproveitar agora que a caixa estava cheia. Foi cozinhar a batata doce para completar a quentinha e acabou se queimando. Ouviu falar que pasta de dente piorava a situação, que gelo aliviava provisoriamente, aumentando logo em seguida a ardência e que a força da mente, contraditoriamente, só era válida para pessoas muito espiritualizadas.
Ligou a rádio MEC para fortalecer o espírito, ou a mente. Não funcionou. Saiu de casa atrasada, levaria uma bronca do patrão, mesmo sem ter cartão de ponto. Na primeira rua que foi atravessar, na condição de pedestre, revoltou-se com um playboy que avançou o sinal. Tentou gritar filho da puta mas ficou muda. A boca abria e fechava, o dente encostava no lábio inferior em i, a língua estalava no céu da boca em lh, a língua empurrava o palato enquanto a boca abria em a, os lábios se encontravam em u, e novamente a língua empurrava o palato enquanto a boca abria em a. Mas nenhum som saía, estava realmente muda.
Continuou andando, quase foi atingida por estilhaços de obra que um operário jogava do caminhão para a caçamba na calçada. O operário pediu desculpas, a culpa não era dele, mas dela que passava pelo lugar errado. Como não tinha conseguido xingar o motorista infrator, tentou xingar o pedreiro. Será que ainda estaria muda? Ao invés do filho da puta o que saiu foi um rock, com voz, guitarra, baixo e bateria. De muda passara a multi-instrumental. Demorou a descobrir como fazia para controlar o volume. Não podia chegar na frente do chefe tocando Gimme Shelter, dos Stones, denunciando assim toda a sua antigüidade.
Como faria para se comunicar se de sua boca só saía música? Sim, escreveria um bilhete.
Entrou no escritório, o chefe enrugou a testa. Pegou uma folha de papel e escreveu estou com dor de garganta, mas as letras se misturaram, se redesenharam e o chefe leu filho da puta. Foi mandada embora. De volta à rua, aumentou o volume e se sentiu bem, tocando Diz que fui por aí., de Zé Kéti e H. Rocha.

10 comentários:

Cláudia Lamego disse...

A Lili dos velhos tempos... Você tem uma capacidade única de injetar poesia na vida real, e eu tinha quase me esquecido disso - não sei se de tão pouco te ler nos tempos pós-Iacs ou só de ler suas coisas mais "áridas", ou "sérias".

Tanto, e essa é uma impressão pessoal, que li esse texto achando que era da Lu. Mas também talvez por causa da tag "acontecimentos reais", que ela usou ali em cima.

É como eu sempre digo, Bandeira de Melo é sobrenome de poeta! Que o seu Roberto não me leia!

Aliás, Lili, você deve mostrar o blog para sua mãe. Aproveite a viagem para Mé.

Beijos

Cláudia Lamego disse...

Ah, o Castelo escreveu sobre as crônicas do Manuel Bandeira, no Prosa e Verso, que o poeta não economizava poesia nesses textos - tal qual Rubem Braga -, que, supostamente, são mais feitos de realidade e prosa. Enfim.

A Nique estudou as crônicas do Drummond e podia relembrar do tema por aqui (ih, de repente, bate uma saudade da faculdade...).

Mais beijos.

Lucas Bandeira disse...

Clau, e o Paulo Mendes Campos... putaqueopariu. Poético pra caralho.

Cláudia Lamego disse...

O Paulo Mendes Campos é um de meus preferidos. Gosto mais dele que do Rubem Braga, aliás.
Há uns sete anos, saíram uns livros ótimos com as crônicas dele. Comprei todos.
Agora, queria esses livros do Manuel Bandeira, da Cosac Naif, mas são carésimos! O último sai por R$ 60! Em tempos de pré-casamento, não dá!
E sou louca pra ter também os do Lima Barreto, em duas belíssimas edições (dois tijolaços).
A crônica é o meu gênero literário favorito.

Olívia Bandeira de Melo disse...

Clau, já dei o endereço do blog pra minha mãe, mas ela não deve ter lido, pois não tem computador em casa. É provável que queira comprar um só pra ler os filhos de verdade e os adotivos por aqui.
O diálogo que temos com ela é muito bacana. Por exemplo, eu e a Dê começamos a ler A Peste, do Camus, na aula de francês.
Minha mãe, sem perder tempo, começou também a reler o livro e também releu O estado de sítio, pra gente poder discutir juntas.
Um barato!

Luciana Gondim disse...

Que deleite, Lili! Você me inspirou. Aliás, sintonia total hoje. Estava buscando uma TAG para a cena do 415, quando abri o site e encontrei a sua. Genial.

Cláudia Lamego disse...

Lili, sua mãe é um amor. Vejo cada pontinha de poesia que ela colocou em você, no Lucas e na Roberta. É uma família especial.

E também saboreio tudo que ela faz, inclusive as geléias de amora, de jabuticaba... o licor de rosas! Quando faremos de novo aquela degustação maravilhosa? Ai, que saudade da fazenda!

A digestora metanóica disse...

Lili, desses seus textos eu sempre soube de ouvir falar. De fato, você costuma ser mais "séria". Amaria ter mais contato com esse seu lado B.

Comecei a campanha "Lili B-sides".

Olívia Bandeira de Melo disse...

O que é ser séria? Qual é meu lado A?
Beijos,
Lili

A digestora metanóica disse...

Ai, Lili,lado A nenhum. Na verdade esse papo de lado A e lado B é tecnologicamente ultrapassado. hahaha