9 de abr. de 2008




Glauber, o texto definitivo


Não queria entrar na polêmica fabricada sobre o que o casseta Marcelo Madureira falou sobre Glauber. Pra mim, Glauber fez dois filmes inquestionáveis, Deus e o diabo na terra do sol (que está sob forma de pôster aqui no meu quarto) e Terra em transe. O resto ou vi e não gostei, ou não vi ou não consegui assistir até o final. São chatos mesmo. Nunca neguei que o que mais me fascinou em Glauber foi a sua capacidade de articulação, de integrar pessoas, de estimular a arte, a discussão, a produção de filmes. Por isso, dediquei pelo menos dois anos e meio para fazer a monografia sobre a sua relação com a mídia e sua atuação como jornalista-articulista-crítico de cinema. Aliás, acho que, mais que o cineasta, perdemos o agitador, o intelectual, o homem que não deixava a classe se acomodar e escrevia compulsivamente (os arquivos no Tempo Glauber guardam essa riqueza literária, que também está publicada em livros diversos. Leiam Glauber!!!).


Ele não era uma merda, e detesto quem o ataca mais para aparecer e criticar os bobos que o veneram que por ter essa convicção mesmo. Taí o que o Casseta queria: páginas inteiras de ataques, de provocações, de artigos e de lembranças. De todos, o melhor foi o que Jabor escreveu ontem: "Eu, Glauber Rocha, sou inexplicável". Se tem uma coisa que o Jabor faz bem é falar de Nelson Rodrigues e do cinema de seu tempo. Aqui vai um trecho do texto (sem as reticências dos cortes), que me emocionou e cujo recorte já está em um dos inúmeros livros que guardo do mais essencial de nossos críticos-cineastas:


"Eu morri com 42 anos e odeio ser chamado de clássico, mito, retrato de antologia; vão todos para a ‘p.q.p.’! Ficam me definindo como um estranho no ninho, um fóssil da velha geração dos anos 60. E abrem polêmicas para saber se eu era um gênio ou uma besta. Nesta adulação ou nesses esculachos post-mor tem, querem provar que não haveria lugar para mim neste mundo pós-moderno. Talvez seja verdade, pois eu sou inexplicável à luz de hoje. Eu vivi num claro instante, uns segundos antes do Big Bang do Brasil atual.


Quando fiz ‘Deus e Diabo”, eu trouxe a melhor tradição do grande teatro e do cinema para o país: Brecht e Eisenstein. Eu gravei nas telas ‘Os sertões’ de Euclides da Cunha, com seus cangaceiros e fanáticos, eu filmei por Guimarães Rosa e Graciliano, eu acabei com o realismo de tipos simplificados. Em meus filmes, como ‘Deus e Diabo’, as personagens do bem e do mal se interpenetravam. Corisco queria acabar com a miséria do mundo e matava para ‘não deixar pobre morrer de fome’; Antonio das Mortes era shakespeariano, em crise com o destino que o levava a massacrar beatos e cangaceiros, assim como o Santo Sebastião, meu Antonio Conselheiro, sacrificava crianças, sonhando com um sertão que iria virar mar. O bem e o mal misturados na miséria das caatingas e da mentalidade política. Com essas idéias, não era possível usar a linguagem careta de ‘princípio, meio e fim’ de Hollywood.


Depois, em ‘Terra em transe’, eu mostrei que as desgraças brasileiras estão além da mera luta de classes. Provei que nossa tradição colonial e oligárquica é que corrói o país, com seus políticos espalhando a gosma da cobiça e da estupidez. Ali, no clímax da zona geral, o povo dança entre ladrões, demagogos, polícia, Igreja, bacharéis, prostitutas, todos num emaranhado barroco, que culmina com o Jardel Filho tapando a boca de um pelego e falando para a tela: “Vocês já imaginaram (esse sindicalista) Jerônimo no poder?”. Foi a maior porrada na sociologia simplista dos derrotados de 64, o que me valeu o ódio daqueles que vêem os pobres como uma divindade sagrada e não como destituídos e manipulados. Hoje, o Brasil está parecidíssimo com ‘Terra em transe’.


Quando ganhei Cannes como melhor diretor, em 69, com o ‘Dragão da maldade’, o Visconti deu uma festa em minha homenagem, dentro da grã-finagem intelectual européia. Eu fiquei aterrorizado naquela noite, pois percebi que eu não queria aquele sucesso. Eu ia ser o quê? Um bacaninha tropical, comendo starlets, fumando charuto, casa com piscina? Eu queria muito mais — queria um terremoto, cheio de som e fúria, com tragédias e apoteoses, eu queria uma revolução que esmagasse a mediocridade. Mas a política e a poesia foram demais para um homem só.


Para mim, não havia futuro. Eu não agüentaria a sopa fria de hoje, o mercado, a malandragem molenga da sacanagem e da grana. E fui piorando, sozinho, sem dinheiro, filmando mal e sem rumo minha loucura.


É necessário dizer isso: morri louco, desesperado, implorando dinheiro à Embrafilme, com a septicemia de uma pericardite mal curada em Portugal, tentando juntar as pontas do sonho sebastianista com o Nordeste miserável e até misticismo. Faltou-me terra, faltou-me o cotidiano, faltou-me estômago.


No final, em Portugal, na úmida Sintra, eu já não comia mais, vivia escrevendo nu, pela noite adentro, cheio de recortes de jornais brasileiros, que eu tentava organizar como um quebra-cabeça que desse sentido a nosso enigma. Passeava até o cais de onde partiram as caravelas, em Lisboa, olhando em direção ao Brasil. Descobri, aterrorizado, que eu era uma personagem de mim mesmo. Eu não existia mais, eu era uma metáfora incompreensível que morava dentro da arte. E, então, eu morri, cheio de tubos, naquela cama de hospital no Rio, olhando meu amigos em contre plongé: o Barretão, o Cacá, o Mascarenhas, o Gustavo Dahl, até a besta do Jabor, todos tentando me segurar como um barco que vai partir; mas eu rompi as amarras e fui”.

7 comentários:

Olívia Bandeira de Melo disse...

Clau, que livros de recortes são esses que você guarda? Mostre pra gente!
Tem um outro filme do Glauber que eu gosto muito, vi na faculdade de Cinema (quase nunca me lembro que cheguei a fazer alguns semestres de faculdade de cinema). É "Câncer", com Antônio Pitanga, Odete Lara, Hugo Carvana e Hélio Oiticica. Mais experimental que outros filmes de Glauber, deixado de lado pelo próprio Glauber.

Cláudia Lamego disse...

Lili, eu disse que ia guardar o recorte do texto em um dos livros. Tenho vários do Glauber, inclusive um que esteve esgotado durante anos, e que levei a cópia xerox para a tia Lúcia, lá no Tempo Glauber. Nem ela tinha uma edição, que estava esgotada há milênios...

Esse câncer eu tentei ver na sala de projeção do Iacs, mas não consegui. Me deu um sono absoluto!

Cláudia Lamego disse...

Esqueci de dizer que nos extras do DVD do "Terra em transe" tem um curta de Glauber sobre a campanha de Sarney ao governo do Maranhão que é indispensável. E, obviamente, é preciso registrar o magistral "Di", sobre o enterro do pintor, que assisti no Tempo Glauber, no tempo das pesquisas para a monografia.

Gardênia Vargas disse...

Bonito!

Pedro Paulo Malta disse...

Pois é, Amor.

Achei muito bonito o Glauber "na primeira pessoa" do Jabor.

Resposta elegante ao pseudo-libelo do Madureira (este que foi apoiado pelas ironias do Xexeo, na edição retrasada da revista d'O Globo).

Pois essa brincadeira de descontextualizar vultos vira um prato cheio nas mãos de quem quer ridicularizar alguém.

Assim, inventam que os dribles Garrincha não funcionariam hoje, que o ieieiê dos Beatles era uma bosta, que João Gilberto não tem voz, etc, etc, etc. Bravatas feitas, veste-se a capinha da coragem ("Foda-se a patrulha!") e o sujeito já se acha um monumento à verdade.

Por isso gostei do subtexto glauberiano que li do Jabor: "Ó... Fiz isso aqui, aqui, aqui... Nem sempre acertei, dei muita topada, mas andei pra cacete e contribuí pacas, pra depois vir um zé-roela e me sentar a caceta" (com trocadilho)

Beyjos ammorozos.

Olívia Bandeira de Melo disse...

Hoje, no Segundo Caderno d'O Globo, saiu a tréplica do Marcelo Madureira, comentando o texto do Jabor e se defendendo do que ele considerou um exagero da mídia a respeito de suas palavras.

Cláudia Lamego disse...

A mídia sempre exagera, aumenta, faz manchete.