Infelizmente, não poderei ir ao Morro da Conceição neste fim de semana, como sugerido pela Clau. Mas quem estiver com tempo não deve perder esta oportunidade. Segue então uma crônica sobre o fim de semana que passei lá, em dezembro do ano passado, durante a festa de Nossa Senhora da Conceição. Algumas pessoas já leram, pelo e-mail do grupo.
"Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião. Daqui do Morro eu não saio não". Foi numa roda de samba bem simples e nada genial que o meu fim de semana acabou. Moradores e convidados faziam a alegria da noite de domingo com seus instrumentos no bar do seu Geraldo, na Ladeira João Homem. No balcão, eu, Marcelo e Antônio conversávamos com Renato, cara e chapéu de nordestino. "Moro aqui há 26 anos e não saio daqui não. Quando falo que moro em morro, às pessoas acham que é favela, mas aqui não é favela não", disse enquanto tomava uma Itaipava geladíssima.
Depois da Itaipava, a cerveja mais tomada no Morro da Conceição é a Antarctica, coisa rara de se ver no Rio de Janeiro dominado pela Skol. Mas esse é só um dos detalhes que transformam o Morro da Conceição num local à parte, um subúrdio das antigas entre a Praça Mauá e os modernos prédios do centro comercial.
O Morro estava em festa. Uma festa que mistura o sagrado e o profano como nunca vi. A imagem da procissão de Nossa Senhora da Conceição nunca me sairá da cabeça. Em frete à igreja, o bar do Sérgio. Enquanto as senhorinhas e os senhorinhos preparam os últimos retoques para a marcha sagrada, outras senhorinhas e outros senhorinhos festejam o profano. Uns em frente aos outros. Quase não há gente de fora, os turistas são raros. Dezoito horas, o sino toca e a procissão sai. Os senhorinhos e as senhorinhas do bar se levantam e rezam enquanto Nossa Senhora passa. Assim que ela se vai, eles retomam seus copos de cerveja e sua prosa animada.
Quando a procissão acaba, o padre benze todo mundo. Como se recusa a entrar no bar, nós bêbados vamos atrás dele na porta da igreja e somos muito bem recebidos. A presidente da associação de moradores parte um gigantesco bolo e uma senhora corcunda e agitada se encarrega da distribuição. Diferentemente do padre, ela entra no bar e oferece a dose de glicose e a benção que faltava aos bebedores de cerveja.
O Morro da Conceição é como uma grande família. Todos se conhecem, as portas e janelas ficam abertas, nos ateliês as pessoas entram não só pra apreciar as obras, mas pra bater um papo e beliscar alguma coisa na cozinha. Artistas acadêmicos e não acadêmicos, antropólogos, historiadores, professores do Observatório de Astronomia da UFRJ dividem com as famílias de portugueses a posse das casas antigas do bairro. Não dá pra dizer quem é mais hospitaleiro, mas algumas figuras se destacam, como o pintor Dallier (na foto acima), nascido e criado no Morro, e a artista plástica Helenice Dornelles, recém-chegada de Nova Iorque. O bar do Sérgio também é uma delícia. Como não recebe turistas, é farto em cerveja mas quase não há comida. Em dias especiais, como neste final de semana da festa de Nossa Senhora da Conceição, sua mãe prepada bolinhos de bacalhau e empadinhas de queijo divinas e baratíssimas - 50 centavos a unidade. No bar do Sérgio também fazem-se amigos de infância num piscar de olhos. O médico Renato fez questão de pagar todas as nossas cervejas e ainda ofereceu um favor inusitado: "Se vocês precisarem de alguma coisa podem me procurar no Miguel Couto. Quer dizer, vocês não vão precisar, mas pode ser que um amigo precise, aí vocês me procuram lá".
O bar do Sérgio fica na esquina das ruas Jogo da Bola e Escorrega. Descendo por qualquer uma delas, chega-se à Pedra do Sal, referência para a história do Rio de Janeiro e do Samba. Ali sentamos, eu, Marcelo e Antônio, tomando um chupe chupe (ou sacolé, como preferem os cariocas), como eu não fazia desde criança. Sujos de chocolate, felizes, cansados e com a impressão de que a vida é bonita.
Foto de Dallier em seu ateliê: Marcelo Valle
11 comentários:
Legal. Lendo isso fica até difícil sair daqui mesmo que seja por um curto período.
Aqui é especial mesmo mas não tão idílico assim...
Carregamos conosco as felicidades e os problemas do nosso cotidiano e morro não está divorciado da sociedade que o engloba.
Dê uma olhada no meu e em outros textos no site da claceiça que está em construção
bjs
Mário Miranda Neto
http://www.projetomaua.com.br/index.php/saberes-do-morro/20-humanidades/6-ensaio-sem-nome-sobre-o-morro-da-conceicao
Vou ler seu texto Mário. E quero deixar claro que o meu relato não é de quem conhece o Morro da Conceição, mas é o relato de um momento que foi vivido lá e que não será mais esquecido. Idílico é o momento que vivi, e não o morro.
Beijos!
Lili, essa crônica é linda. Fiquei com muita vontade de conhecer o lugar. O filme me emocionou muito, e seu texto também.
Mário, o cotidiano no Rio tem problemas em todos os lugares. Não há mais cidade partida, há cidade misturada. Não estamos dissociados mais do morro, nem o morro do asfalto. Precisamos tirar disso o melhor.
Adorei a cronica tambem, mas chega a parecer fantasia. Existe mesmo um morro assim no Rio de Janeiro?
Andréa, o Morro da Conceição não é "favela", naquele sentido mais comum que diz que favela é o local sem a presença de diversos serviços do poder público, como esgoto, água e segurança.
É um bairro antigo, cheio de casas, famílias portuguesas e ateliês de pintura. Dê uma olhada no site do Projeto Mauá.
Beijos!
Realmente, seria interessante comparar esse relato afetivo com o relato dos problemas do lugar. Ou melhor: como é a relação dessas pessoas que você descreve com os problemas cotidianos de lá?
bj
Lucas
Vou fazer uma etnografia do Morro da Conceição e depois conto pra vocês tá, já que o afeto gera tanto problema. ehehehehehehe
Chamem o Jorge Mautner!
Lili, curiosa a sua explicacao. Eu cresci num morro. Nao era favela, era morro. No Morro do Guarabu, todos se conheciam. Os "sinuqueiros", cachaceiros, "o espanhol", "o suico", "a solteirona", "a Jorgina-maluca", as criancas brincando na rua, a barbearia do meu pai, o bar, a pracinha. Ate que a violencia foi descendo e ha uns 5 anos atras, na tal pracinha, foi cravada uma placa "obra do favela-bairro" e meu pai um certo dia teve que fechar a barbearia por ordem dos traficantes. Nesse dia, o morro,pra mim, morreu.
Déa, esse morro fica na Ilha do Governador?
Que no próximo dia 8 de dezembro, essa linda experiência se repita.
Sim, Lili. La mesmo.
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