12 de abr. de 2008

A vida é bonita no Morro da Conceição


Infelizmente, não poderei ir ao Morro da Conceição neste fim de semana, como sugerido pela Clau. Mas quem estiver com tempo não deve perder esta oportunidade. Segue então uma crônica sobre o fim de semana que passei lá, em dezembro do ano passado, durante a festa de Nossa Senhora da Conceição. Algumas pessoas já leram, pelo e-mail do grupo.


"Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião. Daqui do Morro eu não saio não". Foi numa roda de samba bem simples e nada genial que o meu fim de semana acabou. Moradores e convidados faziam a alegria da noite de domingo com seus instrumentos no bar do seu Geraldo, na Ladeira João Homem. No balcão, eu, Marcelo e Antônio conversávamos com Renato, cara e chapéu de nordestino. "Moro aqui há 26 anos e não saio daqui não. Quando falo que moro em morro, às pessoas acham que é favela, mas aqui não é favela não", disse enquanto tomava uma Itaipava geladíssima.

Depois da Itaipava, a cerveja mais tomada no Morro da Conceição é a Antarctica, coisa rara de se ver no Rio de Janeiro dominado pela Skol. Mas esse é só um dos detalhes que transformam o Morro da Conceição num local à parte, um subúrdio das antigas entre a Praça Mauá e os modernos prédios do centro comercial.

O Morro estava em festa. Uma festa que mistura o sagrado e o profano como nunca vi. A imagem da procissão de Nossa Senhora da Conceição nunca me sairá da cabeça. Em frete à igreja, o bar do Sérgio. Enquanto as senhorinhas e os senhorinhos preparam os últimos retoques para a marcha sagrada, outras senhorinhas e outros senhorinhos festejam o profano. Uns em frente aos outros. Quase não há gente de fora, os turistas são raros. Dezoito horas, o sino toca e a procissão sai. Os senhorinhos e as senhorinhas do bar se levantam e rezam enquanto Nossa Senhora passa. Assim que ela se vai, eles retomam seus copos de cerveja e sua prosa animada.

Quando a procissão acaba, o padre benze todo mundo. Como se recusa a entrar no bar, nós bêbados vamos atrás dele na porta da igreja e somos muito bem recebidos. A presidente da associação de moradores parte um gigantesco bolo e uma senhora corcunda e agitada se encarrega da distribuição. Diferentemente do padre, ela entra no bar e oferece a dose de glicose e a benção que faltava aos bebedores de cerveja.

O Morro da Conceição é como uma grande família. Todos se conhecem, as portas e janelas ficam abertas, nos ateliês as pessoas entram não só pra apreciar as obras, mas pra bater um papo e beliscar alguma coisa na cozinha. Artistas acadêmicos e não acadêmicos, antropólogos, historiadores, professores do Observatório de Astronomia da UFRJ dividem com as famílias de portugueses a posse das casas antigas do bairro. Não dá pra dizer quem é mais hospitaleiro, mas algumas figuras se destacam, como o pintor Dallier (na foto acima), nascido e criado no Morro, e a artista plástica Helenice Dornelles, recém-chegada de Nova Iorque. O bar do Sérgio também é uma delícia. Como não recebe turistas, é farto em cerveja mas quase não há comida. Em dias especiais, como neste final de semana da festa de Nossa Senhora da Conceição, sua mãe prepada bolinhos de bacalhau e empadinhas de queijo divinas e baratíssimas - 50 centavos a unidade. No bar do Sérgio também fazem-se amigos de infância num piscar de olhos. O médico Renato fez questão de pagar todas as nossas cervejas e ainda ofereceu um favor inusitado: "Se vocês precisarem de alguma coisa podem me procurar no Miguel Couto. Quer dizer, vocês não vão precisar, mas pode ser que um amigo precise, aí vocês me procuram lá".

O bar do Sérgio fica na esquina das ruas Jogo da Bola e Escorrega. Descendo por qualquer uma delas, chega-se à Pedra do Sal, referência para a história do Rio de Janeiro e do Samba. Ali sentamos, eu, Marcelo e Antônio, tomando um chupe chupe (ou sacolé, como preferem os cariocas), como eu não fazia desde criança. Sujos de chocolate, felizes, cansados e com a impressão de que a vida é bonita.

Foto de Dallier em seu ateliê: Marcelo Valle

11 comentários:

Anônimo disse...

Legal. Lendo isso fica até difícil sair daqui mesmo que seja por um curto período.
Aqui é especial mesmo mas não tão idílico assim...
Carregamos conosco as felicidades e os problemas do nosso cotidiano e morro não está divorciado da sociedade que o engloba.
Dê uma olhada no meu e em outros textos no site da claceiça que está em construção

bjs

Mário Miranda Neto

http://www.projetomaua.com.br/index.php/saberes-do-morro/20-humanidades/6-ensaio-sem-nome-sobre-o-morro-da-conceicao

Olívia Bandeira de Melo disse...

Vou ler seu texto Mário. E quero deixar claro que o meu relato não é de quem conhece o Morro da Conceição, mas é o relato de um momento que foi vivido lá e que não será mais esquecido. Idílico é o momento que vivi, e não o morro.
Beijos!

Cláudia Lamego disse...

Lili, essa crônica é linda. Fiquei com muita vontade de conhecer o lugar. O filme me emocionou muito, e seu texto também.

Mário, o cotidiano no Rio tem problemas em todos os lugares. Não há mais cidade partida, há cidade misturada. Não estamos dissociados mais do morro, nem o morro do asfalto. Precisamos tirar disso o melhor.

Deia Vazquez disse...

Adorei a cronica tambem, mas chega a parecer fantasia. Existe mesmo um morro assim no Rio de Janeiro?

Olívia Bandeira de Melo disse...

Andréa, o Morro da Conceição não é "favela", naquele sentido mais comum que diz que favela é o local sem a presença de diversos serviços do poder público, como esgoto, água e segurança.
É um bairro antigo, cheio de casas, famílias portuguesas e ateliês de pintura. Dê uma olhada no site do Projeto Mauá.
Beijos!

Lucas Bandeira disse...

Realmente, seria interessante comparar esse relato afetivo com o relato dos problemas do lugar. Ou melhor: como é a relação dessas pessoas que você descreve com os problemas cotidianos de lá?
bj
Lucas

Olívia Bandeira de Melo disse...

Vou fazer uma etnografia do Morro da Conceição e depois conto pra vocês tá, já que o afeto gera tanto problema. ehehehehehehe
Chamem o Jorge Mautner!

Deia Vazquez disse...

Lili, curiosa a sua explicacao. Eu cresci num morro. Nao era favela, era morro. No Morro do Guarabu, todos se conheciam. Os "sinuqueiros", cachaceiros, "o espanhol", "o suico", "a solteirona", "a Jorgina-maluca", as criancas brincando na rua, a barbearia do meu pai, o bar, a pracinha. Ate que a violencia foi descendo e ha uns 5 anos atras, na tal pracinha, foi cravada uma placa "obra do favela-bairro" e meu pai um certo dia teve que fechar a barbearia por ordem dos traficantes. Nesse dia, o morro,pra mim, morreu.

Olívia Bandeira de Melo disse...

Déa, esse morro fica na Ilha do Governador?

Luciana Gondim disse...

Que no próximo dia 8 de dezembro, essa linda experiência se repita.

Deia Vazquez disse...

Sim, Lili. La mesmo.